Nos anais da política portuguesa, ficou célebre uma visita oficial do general Ramalho Eanes a Moçambique no início dos anos 80, ainda Samora Machel era vivo, onde presidente moçambicano e o então ministro português dos governos AD
de Pinto Balsemão, André Gonçalves Pereira, pegaram-se à frente de tudo e todos durante toda a visita. Na altura, o “caso” fez manchete em tudo o que era jornal e gerou normal mau- estar nas relações entre Portugal e Moçambique. Agora, a propósito do desaparecimento de Gonçalves Pereira, um jornal de Maputo, “Savana”, transcreve um texto, atribuído a um então jovem e hoje ainda anónimo diplomata português que, com um detalhe pormenorizado e sob o título “Quando Samora zangou com Gonçalves Pereira”, recorda com um detalhe delicioso a visita oficial de Eanes, que então tanta celeuma causou.
Vale a pena ler a “prosa”: “Caminhámos lentamente pela alameda do Palácio da Ponta Vermelha. Levaram-nos para o vasto salão de reuniões. Era o primeiro encontro das duas delegações, encontro alargado (25 de Novembro de 1981).
Seríamos uns cinquenta de cada lado. No centro da longa mesa, face ao Presidente de Portugal, Samora resplandecia, os olhos redondos e muito abertos, percorriam e prescutavam os circunstantes, com um brilho alegre. A contrastar com esta exuberância, a seu lado, sentava-se com ar distante e frio, Chissano, no seu modo e configuração de príncipe.
Samora, sempre a sorrir, deixou cair o silêncio que impôs pelos olhos e fitando Ramalho Eanes interpelou-o em tom jovial:
“Cá, como em Portugal, quando se encontra um amigo, pergunta-se, então como está tudo lá por casa?”
O General, na sua maneira sisuda, fez uma exposição sucinta e incisiva da situação portuguesa. Quando se calou Samora abanou devagar a cabeça.
“Pois a mim parece-me que as coisas por lá não andam nada bem, mesmo nada bem. Os Partidos não se entendem entre si, dentro dos Partidos reinam as maiores desavenças e ninguém respeita o Presidente da República. Eu quando ando por aí a viajar e me perguntam “como vão as coisas lá por casa do teu patrão? “não tenho outro remédio senão dizer que andam mal, mesmo muito mal. E não me agrada nada ter que confessar isso porque, sabe Senhor Presidente, sempre se faz gosto na casa do patrão…”
Não se ficou por aqui. Durante meia hora desenvolveu o tema.
Eu que detesto escândalos públicos comecei a sentir cólicas, receoso que o ministro dos Negócios Estrangeiros, mais visado por representar ali o Governo AD se levantasse e saísse.
O Presidente no seu feitio ponderado, na sua maneira de reagir lenta, matreiramente não interrompeu as diatribes inconvenientes de Samora. Só muito mais tarde,
no final das conversações, disse a Machel que escutara com muita atenção os comentários sobre Portugal. Que da boca de outro Chefe de Estado seriam inaceitáveis, uma interferência aberta nos assuntos internos portugueses, mas
que tais palavras vindas dum Presidente de Moçambique só quereriam por certo significar fraternidade e reflectir as relações muito íntimas entre os dois Países.
Além disso e para futuro, ficávamos nós livres para falar com idêntica franqueza das questões internas moçambicanas.
Mas isto só foi dito muito mais tarde.
Por ora, Machel falava, falava, desancava os políticos como que a justificar, a contrário, a bondade do regime da Frelimo. Dizia muitas verdades, mas ultrapassava
as conveniências. E o André Gonçalves Pereira, combativo, temperamental, agitava-se, remexia-se cada vez mais impaciente.
A dada altura não se conteve e interrompeu Machel, “Mas porque não vem o Senhor Presidente a Portugal ver com os seus próprios olhos, ver como a realidade é diferente do que pensa?”
Oh sacrilégio! Como ousava um simples Ministro cortar a palavra a um Chefe de Estado, ao “grande-chefe”?
“Aquele monhé, vai pagar-mas” terá pensado Machel.
Não o mostrou, porém, naquele momento, guardou para mais tarde a punição. Por ora ignorou, distraiu a assistência, entornando propositadamente um copo de água.
Acorreram, solícitos, vários Ministros moçambicanos que limparam a água derramada, substituíram o copo e garrafa enquanto Samora conversava para o lado com Chissano.
Novo silêncio, e Machel circula à vista pela assistência suspensa daqueles olhos brilhantes. Devagar, a mostrar os dentes brancos num grande sorriso, afirma “vocês, portugueses, devem-me muito dinheiro!…”
Pânico nos corações! Que mais teríamos nós que ouvir?
Mas o histrião, após saborear por uns momentos a expectativa levantada, explica que nas visitas que se seguiriam, Zâmbia, Tanzânia, nos haviam de perguntar, logo
à saída do avião, onde estava o vinho do Samora.
“É o vosso vinho, fui eu que os ensinei a apreciá-lo!” Concluiu.
“Sim, sim, ainda me lembra quando levei a primeira caixa de Rosé ao Nyerere.
Imaginem pôs-se-me a bebê-lo por um copo de plástico! Fui logo comprar-lhe um serviço de copos de cristal Laroche e estive a explicar-lhe para que servia cada um, explicitou Machel, levantando um dedo e baixando-o, numa forma crescente de domínio sobre todos nós, magia e fascínio.
“Até que o Nyerere, acabada a lição me perguntou – Oh Samora, tu antes da guerra
eras cozinheiro? – Oh Nyerere, eu não, porque me perguntas isso? – Oh Samora, se
não eras cozinheiro, como sabes tu todas estas coisas? – Então, Nyerere, foram os portugueses que me ensinaram! – Ah, os portugueses ensinaram-te coisas dessas,
Oh Samora? A nós os ingleses nunca ensinaram nada da vida deles!…”
Era a viragem do Cabo, Machel tornava-se mais vivo, mais intenso, batia com a ponta do dedo bem esticado na mesa, enquanto nos lembrava a obra gigantesca, cultural
e humana, que deixámos em África. Parecia dizer-nos “então já se esqueceram?”
E recordava-nos que éramos um cimento, que éramos responsáveis pela herança que também deixáramos em Moçambique, língua, sentimentos, maneira de ser.
Que tínhamos tanta ou mais obrigação do que os moçambicanos de defender esse património. “Isto aqui é uma ilha de português num oceano de países de língua
inglesa, mas eu, eu não os deixo falar inglês da fronteira para cá, sou uma sentinela a defender os valores que são os Vossos!”
E por tanto tempo quanto antes nos achincalhara, Machel exaltou as nossas virtudes, a nossa História com verve e talento. Gonçalves Pereira tinha o queixo
encostado à mão, fitava-o intensamente, dominado pela qualidade única capaz de o submeter, a inteligência.
Mas logo nessa noite Machel haveria de começar a tirar desforra da ousadia do Ministro português. No decurso do banquete de Estado chamou o Aquino Bragança,
responsável pela Cultura (nr: Aquino era um assessor informal do presidente mas nunca desempenhou qualquer cargo ligada à Cultura), que parecia desempenhar também junto dele as funções de bufão.
O homem pequenino, gordo, despenteado foi plantado por detrás da cadeira do presidente e obrigado a contar aquela história do preto que colocado perante o dilema e a necessidade de eliminar uma cobra (capelo) ou um monhé, matou este último.
E goês é o Aquino Bragança como assim o é Gonçalves Pereira.
O programa da visita foi-se desdobrando, a monumentalidade de Cahora Bassa, a magia da Ilha de Moçambique, e com ela se acelerou o ritmo interior de Machel.
No último dia Eanes entregou-lhe a espada de Marechal. Foi no grande salão da Ponta Vermelha.
Uma banda fez evoluções militares em frente de Samora e dos Ministros que são Coronéis e envergavam uniformes de gala verdes, com muitos galões, com muitos
dourados e tricórnios emplumados.
Os Ministros brancos sugeriam personagens de opereta, sobretudo quando se juntaram ao coral que Samora liderava, entoando Kanimambo, Kanimanbo, tão africano, tão natural na boca dos pretos, tão artificial nos Ministros brancos e indianos.
Saboreei o maquiavélico Veloso naqueles trajes de aparato. Vinha-me à ideia o encontro da Isabel Gaivão, mulher dele, quando na praia, num desafio gratuito e demagógico, apresentou a sogra a um primo, sublinhando “a mãe de meu marido, que é uma camponesa de Mangualde”.
E logo o primo que entendeu a agressão – “que engraçado até rimava se você acrescentasse que a sua Avó é a Condessa de Mangualde…”
Bebeu-se champanhe nos jardins. Samora bebeu muito, no entusiasmo de celebrar aquele acontecimento cheio de simbolismo. Portugal entregava-lhe a espada. Era como o coroamento da vitória!
O banquete de retribuição de Eanes teve lugar no Hotel Polana (nr: 28 de Novembro).
Trezentos convidados alinhavam-se nos braços que se estendiam perpendiculares.
In abc Portuscale