A deteção de cobras na compreensão do nosso sistema visual
São muitas as pessoas que se sentem desconfortáveis na presença de uma cobra ou ao observar uma fotografia de uma cobra. No entanto, apesar de já não ser tão frequente o encontro inesperado com estes potenciais predadores como antigamente, pelo menos em contextos citadinos, as cobras continuam a desempenhar um papel importante na compreensão do nosso sistema visual.
Há pouco mais de uma década, Lynne Isbell, Professora de Antropologia e Comportamento Animal na Universidade de Califórnia, desenvolveu a Teoria da Deteção das Cobras (https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0047248406000182). Segundo esta teoria, o aparecimento das cobras venenosas desempenhou um papel fundamental na evolução do sistema visual dos primatas.
As cobras venenosas surgiram há cerca de 60 milhões de anos, em África ou na Ásia, e depressa se tornaram um dos primeiros grandes predadores dos primatas. Estas, em comparação com as suas ancestrais, eram detentoras de uma das armas mais letais até ao momento: os seus poderosos venenos. Com quantidades reduzidas de veneno, estes predadores conseguiam matar ou lesar gravemente as suas prezas, mesmo as de grandes dimensões, como é o caso dos primatas. Para além disso, as cobras venenosas estavam muitas vezes camufladas na vegetação, o que tornava a sua deteção particularmente desafiante, exigindo uma perceção visual mais apurada do que para os restantes predadores. Assim, de acordo com a Teoria da Deteção das Cobras, os primatas viram-se obrigados a desenvolver sistemas visuais aperfeiçoados de forma a permitir uma deteção mais célere das cobras venenosas.
Mas este aperfeiçoamento não aconteceu de um dia para o outro. Tomando como ponto de partida as perspetivas evolutivas, uma deteção rápida de um estímulo potencialmente perigoso no ambiente possibilita uma rápida resposta do observador – mesmo antes que esse estímulo seja percebido como correspondendo a uma verdadeira ameaça ou a algo inofensivo – aumentando assim as hipóteses de sobrevivência. Esta resposta envolve um conjunto de ações por parte do observador, tais como ações de luta ou de fuga, que são facilitadas por alterações do estado fisiológico, tais como aumento da frequência respiratória e da dilação da pupila. Deste modo, através de pressões evolutivas, os primatas com sistemas visuais menos desenvolvidos, pouco habilitados para detetarem as cobras camufladas na vegetação, corriam maior risco de ser mordidos e de não deixar descendência, acabando eventualmente por se extinguir – um dos argumentos da Professora Lynne Isbell.
Apesar de ousada, a Teoria da Deteção das Cobras é suportada tanto por investigações experimentais em contexto laboratoriais como em situações mais ecológicas (ainda que menos frequentes). Estas investigações mostram que somos capazes de detetar, de forma muito rápida, pistas visuais que sinalizam uma possível ameaça, sobretudo quando essa ameaça foi outrora relevante para a nossa sobrevivência enquanto espécie. Por exemplo, em estudos de neurofisiologia, certas redes neurais são sistematicamente ativadas quando primatas não-humanos e humanos são expostos a fotografias de cobras. Estas redes parecem ser responsáveis por transportar as informações capturadas pelos nossos olhos para determinadas estruturas cerebrais, de forma rápida, direta e praticamente independente das nossas características individuais e dos nossos conhecimentos. Uma dessas estruturas, fortemente envolvida nos sistemas de deteção e de resposta de ameaça, é a amígdala. O mesmo não acontece, porém, quando são exibidas formas geométricas ou fotografias de aranhas. Curiosamente, as aranhas, apesar de potencialmente perigosas – e especialmente ativadoras para as pessoas com fobia – são menos relevantes do ponto de vista evolutivo do que as cobras, o que pode explicar a ativação de áreas diferenciadas do cérebro na presença destes dois estímulos.
Também ao nível do comportamento, os estudos revelam que imagens de cobras são detetadas de forma preferencial por primatas não-humanos e humanos. Por exemplo, quando é solicitado a adultos saudáveis que pesquisem um estímulo visual por entre um conjunto de estímulos irrelevantes, imagens de cobras são detetadas mais rápida e corretamente do que imagens de aranhas ou de objetos inofensivos, tais como cogumelos. Este efeito é observado quando as tarefas são particularmente exigentes do ponto de vista percetivo, numa tentativa de mimetizar, tanto quanto possível num estudo em laboratório, o ambiente complexo em que estes estímulos muitas vezes se inserem. Padrões de resposta semelhantes são também reportados em investigações com crianças, o que reforça que os processos inerentes à deteção de cobras são, de alguma forma, independentes de aprendizagem.
A deteção preferencial de cobras parece também ocorrer quando estas pistas não são visíveis de forma consciente, tal como verificado num estudo conduzido por investigadores da Universidade de Aveiro e do ISPA – Instituto Universitário, publicado em 2018 na revista Emotion (https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/29265840/). Nesta experiência, através de uma técnica laboratorial específica, as imagens relevantes para a tarefa eram apresentadas de forma muito gradual a apenas um dos olhos, enquanto imagens concorrentes e mais dominantes eram apresentadas ao outro olho. Assim, numa fase inicial, apenas as imagens concorrentes eram visíveis pelos participantes. Contudo, com o decorrer do tempo, as imagens relevantes iam-se tornando mais visíveis até que finalmente acediam à “consciência visual”. Os participantes eram então instruídos a indicar, o mais rapidamente possível, o momento a partir do qual conseguiam visualizar as imagens ou partes das imagens relevantes. Outro aspeto importante deste estudo passou pela manipulação do nível de detalhe das imagens. Os investigadores verificaram que, nas condições que proporcionavam menor detalhe visual, as imagens de cobras eram mais rápidas a aceder à “consciência visual” do que as imagens de animais inofensivos (pássaros). Como tal, os resultados do estudo sugerem que o nosso sistema visual não requer detalhes finos para que as cobras sejam detetadas mais rapidamente, de forma consciente, bastando receber informação grosseira, mas sugestiva da presença deste predador, como é o caso de imagens desfocadas com a forma curvilínea de uma cobra.
Para concluir, as muitas investigações nesta área apontam consistentemente para uma deteção preferencial de pistas visuais que sinalizam a presença de uma cobra no ambiente, o que vai ao encontro de alguns dos argumentos da Teoria da Deteção das Cobras. Assim, e a apesar de não ser ainda totalmente conhecido o peso do aparecimento das cobras venenosas na evolução dos primatas, o estudo da deteção destes predadores parece ter contribuído (e continuar a contribuir) para a investigação e compreensão dos fenómenos visuais da espécie humana. Este estudo tem também um papel fundamental do ponto de vista da Psicopatologia, uma vez que muitas das Perturbações Mentais são caracterizadas por desregulações específicas nos sistemas de deteção e de resposta de ameaça, como é o caso da Esquizofrenia e das Perturbações de Ansiedade.
Assim, da próxima vez que se deparar com uma cobra – mesmo que inofensiva – procure perceber quais foram as suas reações mais imediatas!
Joana Grave
Joana Grave é Licenciada em Psicologia (2012) e Mestre em Psicologia Forense (2014) pela Universidade de Aveiro. Colaborou enquanto investigadora (2016-2018) no Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, e como assistente convidada (2017-2018) na mesma instituição. É atualmente bolseira de doutoramento em Psicologia no Departamento de Educação e Psicologia da Universidade de Aveiro, em colaboração com o Departamento de Psiquiatria e Psicoterapia da Universidade de Tübingen, Alemanha. O objetivo geral da sua investigação passa por compreender a forma como determinadas pistas sociais (em particular, expressões faciais e odores corporais) são percecionadas e modelam processos cognitivos, comportamentais e fisiológicos, tanto na população geral como em certas perturbações mentais. Para além do percurso académico, é membro da Ordem dos Psicólogos Portugueses desde 2016. Já desempenhou funções de psicologia clínica, psicogerontologia e psicologia da justiça.