EM DEFESA DA HISTÓRIA
A PEDRA DE ARMAS DA FONTE DO CASTELO DE MONTALEGRE
A crónica de hoje já estava alinhavada há muito. Entretanto foram surgindo outros temas que num determinado momento considerei prioritários. Passaram-lhe à frente. A publicação foi retardando.
Um artigo lido recentemente com a explicação do significado da “Fonte da Mijareta” em Montalegre, numa curiosa interpretação do articulista, publicado num jornal da imprensa regional, levou-me a procurar o esboço em questão e aplicar-lhe o reboco final. Aqui vai.
Enquanto a “Fonte da Mijareta” embora jorrando água em caudal intermitente dá de beber a quem passa, consoante o desejo ou a carência orgânica do passante, a “Fonte do Castelo” de que vou falar, de fonte só tem o nome, encontra-se desprezada, já não sacia a sede ao caminhante que sobe o monte da fortaleza de Montalegre.
Quem pretender visitar o castelo se não for prevenido, talvez lhe passe ao lado a fonte em questão. Aconteceu comigo. Foi a leitura casual em tempos idos de uma frase num livro, ou seria em artigo de jornal, que me alertou. Uma frase sensivelmente do seguinte teor: “…a fonte do castelo de Montalegre possui uma pedra com as armas de D. Afonso III”. Eu conheço bem o castelo por dentro e por fora, quanto à fonte passou-me despercebida! Na altura interroguei uma pessoa nascida e criada na terra tendo-me respondido que realmente a fonte existe e segundo constava a pedra tinha uma gravação com as armas de D. Afonso III.
A informação deixou-me curioso. Quando tempo depois revisitei Montalegre, subi ao monte do castelo para conhecer a enigmática fonte com a pedra de armas que, “segundo constava”, remontava aos anos do reinado de D. Afonso III, portanto ao século XIII.
Realmente, encoberta por um muro, de costas voltadas para a fortaleza, distante algumas dezenas de metros do referido monumento, ali estava o fontanário à sombra de duas frondosas árvores.
Construída em granito rocha característica da região, de linhas simples, já conheceu melhores dias.
Analisemos então a pedra de armas incrustada na fonte
(Fig. 2), razão da minha visita.
Conforme se observa nas fotografias aqui reproduzidas, obtidas há mais de uma dezena de anos, a gravação apresentava-se já parcialmente degradada em consequência do desenvolvimento de musgos, líquenes e ao desgaste provocado pelos agentes atmosféricos, embora esteja persuadido que houve ali também mão humana destruidora. Contudo, tem valor para a História de Montalegre.
Numa primeira observação, se quisermos ser rigorosos tendo por base a História e em particular a Heráldica, não é difícil concluir: os montalegrenses foram iludidos. A frase é falsa, porque as armas reais gravadas na pedra não correspondem ao escudo de D. Afonso III (1248-1279). Este rei outorgou o primeiro foral a Montalegre em 9 de Junho de 1273, no qual manifesta o desejo de mandar erguer um castelo. (1) Porém, posso asseverar: a pedra de armas da fonte nada tem a ver com D. Afonso III, é seguramente mais recente.
Passemos à explicação: a pedra de armas ostenta uma coroa superiormente, (Fig. 2) enquanto o brasão real desse monarca não tem coroa. (Fig. 3) A coroa somente “entrou” no brasão dos reis de Portugal anos mais tarde, um século e meio depois, conforme irei documentar.
A Torre do Tombo e outros arquivos, até monumentos espalhados pelo país, possuem testemunhos com o escudo real de D. Afonso III, no qual a coroa está sempre ausente. Vou apresentar alguns exemplos.
Os “Diálogos de Vária História”, uma obra de Pedro de Mariz impressa em Coimbra em 1594, tem uma gravura com o retrato de D. Afonso III coroado. Completam a gravura o seu escudo real no qual a coroa está ausente. Quem vive em Valença ou já atravessou a porta medieval da fortaleza mandada ampliar em 1262 por D. Afonso III terá observado numa pedra da parte superior do arco um escudo gravado. Representa as armas reais do Bolonhês. Conforme se constata a coroa está ausente. Quem desconhecer a gravação em causa poderá observá-la na figura 4. Esta característica – ausência de coroa – verifica-se em todos os documentos fidedignos do monarca.
Para não ser exaustivo apresento mais um exemplo:
Na fig. 5 está reproduzido o selo real de D. Afonso III preservado na Torre do Tombo. Assim como nos exemplos anteriores, também não possui coroa a encimar o escudo. Este pormenor é fundamental e permite-nos concluir: a pedra de armas da fonte não identifica D. Afonso III. Segue a justificação:
Continuando a apoiar-me na Heráldica, é possível assegurar: a coroa a encimar o brasão real aparece pela primeira vez no século XV, na 2ª dinastia ou dinastia de Avis, com D. Duarte (1433-1438). Podemos certificar, a adjunção da coroa ao brasão dos reis de Portugal aconteceu entre 1433 e 1434, conforme se constata na figura 6 que revela o selo real de D. Duarte datado de Abril de 1434. Esta transformação verificada apenas no reinado desse rei, (introdução da coroa) não foi por acaso, mas, influenciada pela tradição vigente noutros países europeus dessa época.
Vejamos o que a gravação da fonte tem mais para nos contar.
Desloquemos a nossa atenção para uma orla com sete castelos. Esta orla, bordadura ou cercadura, foi realmente introduzida por D. Afonso III no seu brasão quando iniciou o reinado para o distinguir do brasão de seu irmão D. Sancho II filho primogénito de D. Afonso II a quem substituiu no governo. A introdução de uma “diferença”, a referida cercadura, está de acordo com as práticas heráldicas da época. Essa orla com castelos manteve-se nos brasões reais até ao final da monarquia, ou se quisermos ser exactos, continuou durante a república até à actualidade. Inicialmente o número de castelos era indeterminado. Estabilizaram em 7 nos meados do século XVI.
Terá a pedra de armas algo mais para contar?
Ainda que na área interior da bordadura de castelos os escudetes estejam desgastados, ainda é perceptível o que restou do escudete do lado direito do brasão. Está vertical.
Tal não se verifica nos escudetes laterais das armas reais de D.Afonso III (Ver figuras 3, 4 e 5) cujos escudetes laterais estão horizontais e orientados para o centro com um número indeterminado de besantes.
O pormenor é importante para ajudar a datar a pedra de armas, porque o endireitamento dos escudetes laterais verificou-se com D. João II, mais propriamente a partir da reforma de 1485 implementada pelo referido rei. Até essa data os escudetes laterais mantiveram-se sempre horizontais.
Baseando-me nos dados históricos referenciados, é correcto concluir: por certo a pedra de armas não é anterior a 1485.
Poder-se-á revelar quais as armas reais gravadas na pedra da fonte?
Sem mais documentos, não será despiciendo admitir: estão gravadas as armas reais de D. Manuel I (1495-1521), monarca também ligado a Montalegre pois outorgou-lhe foral novo em 18 de Janeiro 1515. (2) Foram elaborados 3 exemplares do foral: um para a vila de Montalegre, extraviou-se, de outro destinado aos oficiais régios deconhece-se o paradeiro. Resta o 3º exemplar reservado à Torre do Tombo do qual se extraiu a cópia do brasão real de D. Manuel I que se reproduz na figura 7.
As semelhanças verificadas com a pedra de armas da fonte são evidentes. Todavia, com esta crónica pretendi mais uma vez fazer a defesa da história.
NOTA FINAL: O estado desprezado em que encontrei o fontanário e a pedra de armas, verifica-se em tantos monumentos históricos espalhados pelo meu país. Será por falta de visão das auroridades responsáveis, por carência de verbas para a realização de obras de recuperação, ou sei lá qual o motivo?! Uma certeza: marcos da História de Portugal vão definhando até à inevitável extinção.
Desconheço o estado actual da fonte do castelo e da respectiva pedra de armas. Se nos últimos dez anos não sofreu uma operação de restauro, dentro de breve tempo será a degradação total. Faz pena, porque é um pedaço da História de Montalegre que se perde.
NOTAS:
- Livro I de Doações de D. Afonso III, f. 110, Col.I (IAN/Torre do Tombo)
- Livro de Forais Novos de Trás-os-Montes, f. 40 V. e seg., Col. I (IAN/Torre do Tombo)
(João Soares Tavares escreve segundo o anterior acordo ortográfico)