A ÚLTIMA ÁGUIA REAL DA SERRA DO GERÊS (*)
João Soares Tavares

No estudo sobre o corço (Capreolus capreolus), identificado em sete artigos aqui publicados tempo atrás, prometi que iria dedicar um trabalho à águia real (Aquila chrysaetus) predador natural do corço, embora nas áreas de distribuição desse cervídeo no nosso país se manifeste em número pouco significativo. Aqui vai.
Foi prática corrente nalgumas regiões destruírem os ninhos da águia real ou roubarem os
aguiotos, nome que recebem as jovens águias, condenadas por ignorância dos homens pelo desaparecimento de galinhas e cabritos. Noutras regiões é considerada uma ave de mau agoiro e a sua presença sinal de infortúnio, daí a caça impiedosa que lhe foi movida.
Retrocedo alguns anos e viajo pela pena de Guedes de Amorim até à fraga da Ermida na serra do Marão num longínquo dia de S. João, data tradicional para o povo local dar caça às águias:
«Seis homens com sacos de lona pela cabeça haviam sido metidos em cestos de vindima e
começavam a ser descidos a lanços de corda, mas suavemente, pelos moços de segurança.
Um silêncio tão grande, a multidão tinha fechado todas as bocas, (…). Olhos no ar, o peito a bater violentamente, todos esperavam a voz que havia de chegar de cada um dos homens que seguiram nos cestos, pelas escarpas da Fraga abaixo. (…).
Ouviu-se depois a primeira voz: “Puxa! Era o sinal combinado, denunciando que o primeiro
homem, metido no cesto, atingira a meia altura da fraga, entrando na caverna que era o ninho do rapinante, apoderando-se do filho. (…) Mas, logo se colheram novas vozes de outros homens: “Puxa!”, “Puxa!”, “Puxa!”. Os gritos vinham quebrar-se nas lombas, (…). No desejo de se apoderarem dos filhos, que já estavam cá em cima mortos, e encerrados em cestos, as águias traçavam longas descidas verticais, estendendo as garras em desespero vingativo.
Ouviu-se o primeiro tiro, começo da intensa fuzilaria, (…). As águias arremetiam, mas os
estampidos lançavam-nas em debandada…» (1).
Foram estas e outras atrocidades a principal causa do quase desaparecimento da águia real
em Portugal. Incompreensivelmente perseguida pelo homem, esta ave encontra-se no nosso país em perigo de extinção.
O regime alimentar da águia real resume-se, além do corço, a coelhos, perdizes e alguns
estudiosos indicam que na sua alimentação entram também répteis, e até a raposa. Por
carência de alimentos vivos, a águia recorre a cadáveres muitas vezes vítimas de pesticidas e de outros venenos destinados aos lobos, com as consequências daí resultantes.
Uma pesquisa realizada no início dos anos oitenta do século passado no Parque Nacional da
Peneda-Gerês, permitiu-nos apenas observar as fragas alcantiladas onde em anos anteriores nidificou a águia real. Em locais cuja presença foi confirmada nos anos setenta pelo Eng. Miguel Pimenta: mata do Cabril com os ninhos do rio da Escada e da Torre, já não conseguimos assinalar a sua presença. A fraga do Sarilhão em frente da extinta aldeia de vilarinho da Furna foi local de nidificação da águia real, mas, segundo testemunhos, há vários anos que aí não se observa qualquer exemplar. O mesmo se verifica na região de Tibo na serra da Peneda. Em Cornos da Fonte Fria, Fafião, Ramiscal e Cabril outros locais de nidificação, há anos deixaram de o ser. Nos anos oitenta, pastores da vezeira de um
aldeamento da freguesia de Cabril, bons conhecedores da serra do Gerês, alertaram-me para a presença de uma águia isolada a sobrevoar a Surreira do Meio-dia uma monumental fraga com mais de 1000 metros de altitude, local de nidificação confirmada em anos anteriores.
Exultei ao pensar no possível regresso da águia real aquele local. Depois de várias observações e tentativas de subida à fraga com a ajuda de um guarda florestal, não
conseguimos visualizar a águia nem detectar um eventual ninho. Apenas alguns paus numa
saliência da fraga fez lembrar o que terá sido o local de um ninho em tempos passados. Para recordação resta-nos a fotografia que registámos da imponente fraga e o povo designa pelo curioso nome Surreira do Meio-dia.

Portanto, no P. N. P. G. a águia real já não é um predador do corço. Nos anos noventa, mais de dez anos após concluir o estudo referido, encontrava-me na serra do Gerês num outro trabalho de pesquisa quando um guarda florestal meu conhecido de andanças de épocas passadas me informou estar no centro de recuperação de aves do Parque Nacional uma jovem águia real ferida provavelmente por um “caçador” pertencente ao grupo daqueles que atiram em todo o animal selvagem que avistam. Fora encontrada numa outra região do país e para ali transportada por quem demonstrou uma verdadeira consciência ecológica, para quem o conservacionismo deve ser uma atitude de interesse colectivo.
Após obter autorização dirigi-me ao centro de recuperação e tive o grato prazer de observar e fotografar a jovem águia real parcialmente recuperada aventurando-se já em pequenos voos num local apropriado. Oportunamente iria ser devolvida à Natureza. Pensei então nos dias passados calcorreando as serranias raianas do noroeste à procura de indícios da águia real e, sem imaginar, uma jovem águia tinha vindo ao meu encontro. Aqui deixo a fotografia reproduzida cerca de três décadas depois da sua obtenção.

NOTA:
(1) Amorim, Guedes de – “Aldeia das águias”, Lisboa, 1939
(*) Este texto jornalístico foi adaptado do estudo realizado pelo signatário durante finais
dos anos setenta e primeiros anos de oitenta do século passado para o documentário
cinematográfico “O Corço em Portugal” concretizado em 1982, que somente foi possível
realizar pela compreensão e facilidades concedidas durante a pesquisa, das Direcções
do Parque Nacional da Peneda-Gerês, do Serviço Nacional de Parques Reservas e
Conservação do Ambiente, e dos Serviços Florestais e Aquícolas em actividade nos
anos referidos, a quem manifesto o meu agradecimento.
(A reprodução do texto e fotografias que compõem este trabalho só é autorizada mencionando a origem.)
(João Soares Tavares escreve segundo o anterior acordo ortográfico)