Voltemos à questão: Afinal quem descobriu a América?
Conforme expressei em crónica anterior, embora não possua uma certeza documental inquestionável sobre descoberta das Antilhas por navegadores portugueses a partir dos anos vinte do século XV, portanto, antes de Colombo atingir a primeira Antilha na sua viagem de1492, a representação das ilhas Antilia e Satanazes, e duas outras mais pequenas, Saya e Ymana na carta náutica de Pizzigani de 1424, (Fig. 1)
esteve fora de dúvida na origem de muitas viagens de exploração no Atlântico pelos navegadores portugueses na tentativa de encontrar terras a Ocidente. Aparentemente frágeis, os navios nacionais da era dos descobrimentos, ofereciam as garantias necessárias que permitiam a navegabilidade em mar alto. (Fig.2)
A provar a nossa opinião, é a representação daquelas ilhas em mais de meia dúzia de cartas do século XV – reproduzidas em crónica anterior – desenhadas progressivamente para Ocidente à medida que as viagens de exploração progrediam naquela direcção. Henry Vignaud foi o primeiro historiador do século XX a colocar em evidência a expansão portuguesa para Ocidente. (1) A partir do início da colonização da Madeira e dos Açores, respectivamente em 1425 e 1445 (2), esses arquipélagos tornaram-se uma verdadeira escola de navegadores, onde muitos portugueses aprenderam a navegação em mar alto e de longo curso. As referidas datas são marcos importantes a reter. Daqueles arquipélagos, em particular dos Açores, partiram muitas expedições.(Fig.3)
Contudo, os documentos oficiais calam as viagens de portugueses para Ocidente e, as poucas fontes existentes são em grande parte estrangeiras, algumas propositadamente adulteradas para realçar os feitos de outros. Um caso paradigmático de escamoteação dos feitos dos portugueses, no que diz respeito às viagens no Atlântico ocidental, verifica-se com os escritos originais de Cristóvão Colombo adulterados intencionalmente pelo seu filho, Fernando Colombo, para realçar o feito do pai.
Os roteiros originais das quatro viagens de Colombo escritos pelo almirante, assim como o livro original da autoria do filho, perderam-se. Resta uma cópia do roteiro da primeira viagem copiado por Bartolomé de Las Casas, e a versão italiana:” Le Historie della Vita dei Fatti di Cristoforo Colombo” per D. Fernando Colombo, suo figlio, Venecia, 1571. Quero destacar o livro de Fernando Colombo por dois motivos: primeiro, porque permite constatar a importância dos conhecimentos obtidos pelo Almirante durante a estada em Portugal, ouvindo navegadores experientes, recolhendo informações cartográficas e outras sobre ciência náutica, que lhes permitiram em 1492, realizar a viagem para Ocidente “à descoberta da Índia”; a segunda razão, por fornecer dados com interesse sobre a viagem do português Diogo de Teive, iniciada nos Açores, provavelmente a primeira frota a bordejar terras da América do Norte. De realçar também os textos escritos por Colombo alguns copiados por Las Casas (3) na sua obra “Historia General de las Indias”, pois permitem estabelecer comparações com a versão de Fernando Colombo e, verificar, como este intencionalmente escamoteou a importância das viagens realizadas pelos portugueses antes da primeira viagem do pai. Analisemos a viagem em questão.
Nos primórdios da segunda metade do século XV, partiu da ilha do Faial nos Açores uma pequena frota comandada por Diogo de Teive, que fora escudeiro e piloto do Infante D. Henrique. (Fig. 4)
É a primeira viagem documentada iniciada naquele arquipélago com resultados positivos no descobrimento de novas terras. Diogo de Teive e o seu filho João de Teive cerca de 1453 descobriram as “Foreiras”, (Floreiras) nome inicialmente dado às ilhas das Flores e do Corvo, como se prova por documento régio: “…as ilhas que chamam as Foreiras, que pouco há que acharam Diogo de Teive e João de Teive, seu filho,…”. (4)
Sobre a viagem de Diogo de Teive registe-se uma passagem do livro de Fernando Colombo que escreveu a partir dos manuscritos do pai: «Andou também à procura desta ilha (a Antilha ou ilha das Sete Cidades) um certo Diogo de Teive, (relembro, a viagem do português realizou-se 40 anos antes da primeira viagem de Colombo às Antilhas, portanto, em 1452 ou 1453,) cujo piloto, chamado Pedro de Velasco, nativo de Palos de Moguer em Portugal (estranho erro de Fernando Colombo, que Bartolomeu de Las Casas evita, pois Palos localiza-se como se sabe em Espanha perto de Huelva na província de Andaluzia), disse ao Almirante (Colombo) em Santa Maria de la Rabida: que partiram do Faial e navegaram mais de cento e cinquenta léguas na direcção de Sudoeste e ao regressarem descobriram a ilha das Flores, à qual foram guiados pelas muitas aves que viram naquela direcção, pois que, sendo tais aves terrestres e não marinhas, pensaram que só podiam repousar nalguma terra; e depois caminharam tanto pelo Nordeste, (A direcção correcta deveria ser Noroeste, alteração feita intencionalmente por Fernando Colombo como se infere no texto seguinte) que tomaram o Cabo da Clara na Irlanda pelo Oeste, na qual paragem encontraram grandíssimos ventos do Poente, com mar tranquilo.
Por isso, julgavam estar perto de alguma terra que os cobrisse pelo Ocidente. Mas, porque já tinha entrado o mês de Agosto, não quiseram voltar à ilha. [A cópia de Las Casas difere nesta passagem: “… e não prosseguiram indo para descobri-la, porque já estavam em Agosto e temeram o Inverno” (5)]. Isto foi mais de quarenta anos antes que se descobrissem as nossas Indias. [Las Casas escreve: “Isto diz foi quarenta anos antes que Cristóvão Colombo descobrisse as nossas Indias” (6)]. (Estará mais de acordo com o documento régio de D. Afonso V, já citado, datado de Janeiro de 1453, sobre o descobrimento das ilhas Flores e Corvo). Isto era-lhe confirmado pela relação feita por um marinheiro [Las Casas escreve: “Um terceiro marinheiro contou a Cristóvão Colombo” (7)] no porto de Santa Maria, lhe disse que numa viagem à Irlanda viu essa terra, que então pensava ser da Tartária, que tinha um prolongamento para ocidente, provavelmente aquela que nós chamamos Terra dos Bacalhaus, (8) à qual pelo mau tempo não puderam arribar. Com isto, diz, conformava-se um Pedro de Velasco, galego, (notar: numa passagem anterior, Fernando Colombo identifica-o piloto “nativo de Palos de Moguer em Portugal”) o qual lhe afirmou na cidade de Múrcia, em Castela, que, indo naquele caminho da Irlanda, se aproximaram tanto do Noroeste [Las Casas escreve:
“estavam a navegar e a afastar-se tanto para Noroeste” (9)] que viram terra a ocidente da Irlanda, a qual ele crê ser a mesma que um Fernão Dulmo (10) procurou descobrir. (Las Casas escreve o resto da frase igual à de Fernando Colombo). O filho de Colombo conclui: …no modo que aqui fielmente narrei, tal como encontrei nos escritos de meu pai, para que se saiba como de pequena coisa alguns fazem fundamento doutra maior”. (11)
O insuspeito historiador espanhol Altolaguire y Duval escreveu: “Fernando Colombo deturpou com frequência a verdade dos factos sempre que esta podia prejudicar a memória paterna”. (12) Documentos do Arquivo Geral de Indias em Sevilha, as Probanzas, que merecem mais credibilidade que a versão de Fernando Colombo, algumas publicadas por Cesário Fernandez Duro, referem: “um Pero Vásquez de la Frontera, piloto de Palos (Certamente o “Pedro de Velasco” da narração de Fernando Colombo), tinha informado Cristóvão Colombo da existência de terras para Ocidente, conhecimento adquirido quando viajara ao serviço de Portugal” (13). Juntando os dados, terá sido durante a viagem de Diogo de Teive. O historiador americano Samuel Eliot Morison, embora crítico e céptico sobre as viagens pré-colombianas dos portugueses ao continente americano, salienta, Colombo “foi muito ajudado e estimulado na sua empresa pelas viagens dos Portugueses ao desconhecido” (14). Acrescenta ainda o mesmo historiador citando o célebre processo judicial da coroa de Castela contra Colombo em 1515, portanto, depois da morte do Almirante: «Um homem, de nome Valiente, declarou que, em 1492, quando Colombo tentava contratar uma tripulação para a sua primeira viagem em Palos, um “Perro Vasques de la Frontera, um homem muito sábio em arte do mar, (trata-se, como parece óbvio do Pedro de Velasco da narração de Fernando Colombo) que uma vez havia saído para fazer a mesma descoberta, aconselhou o dito Colombo e Martin Alonso Pinzón (comandante da Pinta, um dos navios da frota da primeira viagem do Almirante para Ocidente), e encorajou as pessoas, e disse a todos em público que fossem nessa viagem, porque encontrariam uma terra muito rica, e disse isto naquela altura, nos lugares públicos…»
(15) As provas são evidentes. Diogo de Teive e Pero Vasques de la Frontera alcançaram a Terra Nova ou “Tierra de los Bacallaos”, cerca de 1452, isto é, “quarenta anos antes que Cristóvão Colombo descobrisse as nossas Índias”. (16) Teive e os companheiros, não terão reconhecido a terra, “porque já estavam em Agosto e temeram o Inverno” (17). Porém, os dados admitem terem avistado uma porção da costa nordeste da América do Norte. Conforme se depreende, na narração do filho da Almirante existem incongruências de natureza histórica e geográfica. Fernando Colombo falseou a sua narração com o único propósito de exaltar a memória do pai, para que não restassem dúvidas de que fora o primeiro descobridor da América. A sua preocupação foi diminuir a importância dos conhecimentos apreendidos pelo Almirante a partir das viagens realizadas anteriormente pelos navegadores portugueses para Ocidente, como esta de Teive, e, outras realizadas na segunda metade do século XV, (a divulgar em próxima crónica) que permitiram abrir o caminho para Colombo atingir as Antilhas ficando ligado oficialmente ao seu descobrimento.
NOTAS:
(1) Vignaud, Henry – “Historie critique de la grand entreprise de Christhophe Colomb”, Paris, 1911.
(2) Embora exista uma carta régia de D. Afonso V de 2 de Julho de 1439 a conceder licença ao Infante D. Henrique para povoar as “ sete ilhas já descobertas”, (Archivo dos Açores, Ponta Delgada, 1877) de acordo com a “Crónica da Guiné” a colonização iniciou-se apenas em 1445, pelas ilhas de Santa Maria e de S. Miguel. A colonização das ilhas Flores e Corvo é posterior a 1452, porque o seu descobrimento ocorreu cerca desse ano.
(3) Bartolomé de las Casas, o célebre bispo de Chiapas, foi um cronista sério. Deixou documentos credíveis, mas, ficaria sobretudo conhecido por ser o grande defensor dos indígenas das « Índias de Castela » perseguidos e chacinados durante anos pelos conquistadores. Sobre o assunto deixou uma obra de referência : Brevísima Relacón de La Destrucción de Las Indias, editado em Sevilha pela primeira vez em 1552.
4) O documento é datado de 10 de Janeiro de 1475. A sua leitura poderá induzir que a descoberta das “Foreiras” tenha ocorrido cerca dessa data. Assim não aconteceu, pois outro documento régio assinado por D. Afonso V, em Janeiro de 1453, já menciona a ilha do Corvo. Portanto, a descoberta dessa ilha foi em 1453, ou pouco tempo antes.
(5) Las Casas, Bartolomé de – “Historia General de las Indias”, México, 1950
(6) “Historia General de las Indias”, ibidem
(7) Idem, ibidem
(8) Outra designação da Terra Nova
(9) “Historia General de las Indias”, ibidem
(10) Refere-se a uma viagem empreendida por Fernão Dulmo para Ocidente em data posterior à viagem de Teive.
(11) “Le Historie della Vita dei Fatti di Cistoforo Colombo” per D. Fernando Colombo, suo figlio, Venecia, 1571.
(12) Altolaguire y Duval – “Cristobal Cólon y Pablo del Pozzo Toscanelli, Madrid, 1903
(13) Duro, Cesário Fernandez – “Colon y Pinzon”, Madrid, 1883
(14) Morison, Samuel Eliot – “Portuguese Voyages to America in the Fifteemth Century”, Cambridge, 1940
(15) “Portuguese Voyages to America in the Fifteemth Century”, ibidem
(16) “Historia General de las Indias”, ibidem
(17) Idem, ibidem
(João Soares Tavares escreve segundo o anterior acordo ortográfico)