AFINAL QUEM DESCOBRIU A AMÉRICA? (Parte IV)

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AFINAL QUEM DESCOBRIU A AMÉRICA? (Parte IV)

Dr. João Soares Tavares

João Soares Tavares

As crónicas sobre o tema “Afinal quem descobriu a América?” estiveram em poisio durante semanas em consequência de uma paragem forçada por motivos pessoais. Regressam hoje ao “Ecos de Barroso”.

(Continuação)

A década de sessenta do século XV foi uma época de letargia em viagens para o Ocidente. Excluindo meia dúzia de cartas régias outorgadas por D. Afonso V sobre outras tantas viagens, que, por carência de documentos coevos não foram confirmadas – assunto analisado em crónica anterior – nada se conhece sobre empresas marítimas nacionais verificadas nessa década.

Somente nos primeiros anos da década de setenta aparecem informações sobre viagens no Atlântico Setentrional na obra de Gaspar Frutuoso, “Saudades da Terra”.

João Vaz Corte-Real

Fig. 1 – Estátua em memória de João Vaz Corte-Real na igreja do convento de S. Francisco, Angra de Heroísmo. (Fot. de João Soares Tavares)

João Vaz Corte-Real foi o patriarca de uma família de navegadores, e um dos primeiros colonizadores dos Açores. (Fig. 1) Em 1474 chegou a capitão donatário de Angra na ilha Terceira. Provavelmente realizou  duas viagens no Atlântico Setentrional. Numa delas, “entre 1472 e 1474 descobriu a Terra dos bacalhaus” (Terra Nova). Noutra viagem, provavelmente cerca de 1476, atingiu a Gronelândia. ( Deixamos para outra história a análise desta viagem).

 

Na primeira viagem, “teve a colaboração de Álvaro Martins Homem”. Existem também referências sobre a participação de Álvaro de Ornelas, um dos primeiros povoadores da ilha da Madeira e primeiro capitão donatário da ilha do Pico. Ornelas, fora escudeiro do Infante D. Henrique e, em 1445 viajou até ao sul do Cabo Branco em África. (1) Terão também viajado com Corte-Real, João Fernandes Lavrador e Pêro de Barcelos,

Fig. 2 – A “Terra dos bacalhaus” (Terra Nova) no mapa de Diogo Ribeiro, 1532 (Herzog August Bibliothek, Wolfenbuttel, Alemanha)

habitantes dos Açores, que, numa viagem cerca de vinte anos depois, terão alcançado terras da América do Norte, assunto para uma próxima história.

 

 

 

Fig. 3 – Mapa de Angra do Heroísmo de Jan Huygen van Linschoten, 1596. (The New York Public Jibrary)

O Padre Gaspar Frutuoso (1522 – 1591), natural dos  Açores, com base na tradição açoriana, foi o primeiro cronista a revelar numa obra sobre a História do arquipélago, as viagens de exploração de Corte-Real e Martins Homem na “região boreal americana”, posteriormente chamada Terra Nova, ou “Terra dos Bacalhaus”. (2) A designação “Terra dos bacalhaus” é mais tardia. Aparece em mapas do século XVI, nomeadamente no mapa manuscrito sobre pergaminho de Diogo Ribeiro (1532) (Ver figura 2).

 

Gaspar Frutuoso nasceu no primeiro quartel do século XVI. Privou com habitantes das ilhas que conheceram João Vaz Corte-Real. Provavelmente, alguns deles pertenceram às tripulações das expedições do navegador. João Vaz Corte-Real faleceu em 1496.

Fig. 4 – Reprodução de uma gravura antiga de um barco português da época dos descobrimentosdo. (Arquivo pessoal)

Segundo a tradição açoriana, Corte-Real e Martins Homem receberam como prémio, as capitanias da ilha Terceira (Corte-Real ficou com a capitania de Angra). A doação foi feita por Dona Beatriz viúva do Infante D. Fernando, tutora em 1474 do seu filho, D. Diogo, (nesse ano com cerca de 14 anos), o donatário dos Açores. Em defesa desta tese existe uma carta de doação, de 17 de Fevereiro de 1474, da Infanta D. Beatriz, onde “divide a ilha Terceira em duas capitanias, uma para João Vaz Corte-Real e a outra para Álvaro Martins Homem”. (3) A doação era devida aos “muitos e grandes serviços que êle (João Vaz Corte-Real) tinha prestado ao Infante D. Fernando” (4). Com efeito, “a Coroa encabeçou em 1473 na infanta D. Beatriz e em seus filhos os direitos relativos ao possível descobrimento de ilhas atlânticas, que anteriormente (desde 1460 após a morte do Infante D. Henrique) concedera ao infante D. Fernando, não sendo assim de nenhum modo improvável ter ela (ou D. Fernando) encarregado os ditos navegadores de tentarem longinquamente esse empreendimento”. (5)

A doação foi depois confirmada várias vezes, a última em 3 de Abril de 1483, pelo Duque de Viseu, D. Diogo.

Embora haja referências à doação da capitania da ilha de S. Jorge a Corte-Real, nesse ano de 1474, os documentos oficiais não o confirmam.

A doação da Ilha de S. Jorge só aparece numa outra carta de 4 de Maio de 1483 (confirmada em 5 de Abril de 1488) na qual se volta a invocar ” serviços (não especificados) que o capitão da ilha tinha feito ao pai do doador, (D. Fernando), o duque de Viseu “.

Pouco se sabe de João Vaz Corte-Real antes de ser nomeado capitão donatário de Angra, apenas que fora fidalgo e camareiro-mor de D. Fernando.

João Vaz realizou as viagens que a tradição açoriana perpetuou e alguns historiadores admitem?

Foi o descobridor da “Terra dos bacalhaus”, como Gaspar Frutuoso declara na sua obra “Saudades da Terra”?

Conta-se que João Vaz Corte-Real foi um navegador experiente. Nos Açores era (é) um herói lendário. Viajou no Atlântico e  terá avistado terras do continente americano. Contudo, as doações que recebeu, duvido que fossem para pagamento dos descobrimentos efetuados, a não ser que neste caso singular, tenha havido uma alteração do formulário das cartas de concessão das terras a descobrir. Bastará ler as cartas entre os anos de 1463 e 1474 em que o rei outorgou as futuras descobertas. Realmente, o monarca prometeu, sempre e apenas, a capitania das novas terras. Portanto, não é crível que João Vaz Corte-Real recebesse a capitania de uma parte da ilha Terceira primeiro, e nove anos depois a capitania da ilha de S. Jorge, em consequência de um novo descobrimento. Lógico seria ter recebido a capitania da Terra Nova, se a tivesse descoberto, para a povoar, como geralmente prescreviam as cartas régias de doação. Transcrevo o teor de parte de uma dessas cartas de doação sobre as novas terras, que um navegador (Fernão Gonçalves) pretendia descobrir, datada de 28 de Janeiro de 1474, portanto cerca da mesma data em que ocorreu a doação de uma parte da Terceira a Corte-Real: “… que elle achar ou aquelle a que as elle mandar buscar novamente e escolher pêra as ver de mandar povoar…” (6) Não se compreende portanto, ficar a nova terra recentemente descoberta abandonada, e receber a capitania de parte de uma ilha – a Terceira – já há muito conhecida e colonizada.

Porém, não deixa de ser intrigante, e motivo para especulação, aparecerem em mapas do século XVI, nomeadamente no mapa de Gaspar Viegas de 1534 e, no atlas do cartógrafo João Vaz Dourado também do século XVI, assinalados na representação correspondente à Terra Nova, os topónimos “baía de João Vaz” e “terra de João Vaz”. Porque razão a referida nomenclatura não se encontra em mapas mais antigos, isto é, após o eventual descobrimento da “Terra dos bacalhaus” por João Vaz (1472-74)? Para aumentar a confusão, há quem admita que a representação da Terra Nova nesses primitivos mapas correspondia efectivamente à Gronelândia!

Os topónimos em questão poderiam ser uma homenagem que o verdadeiro descobridor da Terra Nova, Gaspar Corte-Real quis fazer ao pai. Segundo está provado documentalmente, foi esse filho de João Vaz o descobridor oficial da Terra Nova, em 1500. Porém, os referidos topónimos não aparecem referenciados em mapas anteriores a 1534, portanto, somente 34 anos após o descobrimento oficial. A “homenagem” não parece ser uma explicação lógica. Será  realmente “João Vaz” dos topónimos o João Vaz Corte-Real? Também podemos colocar a hipótese desse “João Vaz” ser um navegador homónimo de uma das muitas viagens portuguesas de exploração à Terra Nova, a partir dos primeiros anos do século XVI. (7).

Constata-se a falta de provas que atestem a descoberta da Terra Nova por João Vaz Corte-Real. Finalmente, uma pequena curiosidade que talvez não seja tão pequena quanto isso. João Vaz teve um neto poeta que enalteceu nos seus poemas e, de que maneira, as façanhas da sua família de navegadores. Curiosamente, esse neto, e sabendo a atracção que os netos nutrem pelos avós, ignorou na sua lírica a viagem que o avô terá feito à Terra Nova. Ou, tal neto, de seu nome Jerónimo Corte-Real, constitui uma excepção e não admirava o seu avô aventureiro, ou a viagem de descobrimento da Terra Nova não passa de uma lenda.

O descobrimento da Terra Nova por João Vaz Corte-Real, será o resultado de uma lenda perpetuada pelos açorianos de geração em geração? Por carência de documentação não arrisco uma resposta, mas, estou convicto, João Vaz realizou incursões no Atlântico Setentrional nas últimas décadas do século XV à procura de terras Além-Atlântico, e que, as viagens do patriarca Corte-Real, incentivaram os filhos, Gaspar e Miguel, a procurarem obstinadamente terras no Atlântico Norte, conforme se confirma com resultados positivos  alguns anos depois. Aliás, presume-se, que eles deram os primeiros passos na navegação com o pai, e acompanharam-no, em uma ou mais viagens nesses finais do século XV.

Em defesa da hipótese que João Vaz realizou viagens no Atlântico Setentrional, estão, também, as expedições  que os seus companheiros de viagem Fernandes Lavrador e Pêro de Barcelos empreenderam posteriormente na mesma região Atlântica, certamente incentivados pelos conhecimentos adquiridos durante a viagem no início dos anos setenta sob o comando do experiente navegador açoriano.  Perante o exposto, não será despiciente admitir,  João Vaz Corte-Real bordejou terras da América do norte vinte anos antes de Colombo atingir a primeira Antilha.

 

(João Soares Tavares escreve de acordo com a anterior ortografia)

 

 

NOTAS:

(1) “Crónica dos Feitos de Guiné”, de Gomes Eanes de Zurrara, Lisboa, 1949

 

(2) “Saudades da Terra” de Gaspar Frutuoso obra de seis volumes escrita no século XVI. Este manuscrito do mais antigo cronista dos Açores, esteve durante muitos anos debaixo de um obstinado sigilo e tem sido alvo de muitas críticas, algumas infundamentadas.

 

(3) “Colecção de documentos relativos ao descobrimento e povoamento dos Açores”, de Velho Arruda, Ponta Delgada, 1932

 

(4) “Colecção de documentos relativos ao descobrimento e povoamento dos Açores”, ibidem

 

(5) “História dos descobrimentos portugueses”, de Damião Peres, Lisboa, 1959

 

(6) “Colecção de documentos relativos ao descobrimento e povoamento dos Açores”, ibidem

 

(7) Após o descobrimento oficial da Terra Nova em 1500 por Gaspar Corte-Real, seguiram-se muitas viagens de exploração e pesca para aquela ilha

 

 

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