As energias renováveis e a vantagem do seu armazenamento

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Energia

 

 

 

Miguel Prado
Miguel Prado

Jornalista

 

Baterias: uma visão do futuro ou uma necessidade imediata?
EXCLUSIVO ASSINANTES | 06 ABRIL 2023
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Bom dia!

No sistema elétrico do futuro uma fatia dominante da população circulará nos seus veículos elétricos, que funcionarão como pequenas estações móveis de auxílio à rede: em troca de determinados incentivos, os seus proprietários, em vez de carregar as suas baterias na via pública, poderão “descarregar” alguma da energia acumulada, equilibrando alguns pontos da rede elétrica que estejam em “desequilíbrio”. Mas esta visão do futuro não é nova. Tem anos. E até que se concretize ainda passarão mais alguns anos, porque apesar da crescente popularidade dos carros elétricos o país ainda não dotou a rede das condições ótimas de inteligência e flexibilidade. E também porque a literacia energética tem ainda um longo caminho a percorrer.

Num ponto os especialistas parecem estar de acordo: um sistema elétrico com uma crescente incorporação de fontes renováveis, que têm distintos perfis de produção, nem sempre controlável, vai precisar de ter soluções de armazenamento robustas. O Governo já antecipou de 2030 para 2026 (daqui a apenas três anos, portanto) o objetivo de ter 80% do consumo de eletricidade do país abastecido a partir de fontes renováveis (mais tarde a meta é alcançar os 100%), vindo o remanescente ainda das centrais alimentadas a gás natural, uma energia de transição que, mais do que diabolizada, deve ser entendida, de modo pragmático, como um recurso de que ainda precisaremos por mais alguns anos.

O armazenamento será um ponto crítico no sistema elétrico em menos de uma década. E, tendo em conta os longos períodos de planeamento, tomada de decisão, licenciamento e execução, no setor da energia gerir a próxima década é quase como decidir o que vamos almoçar amanhã. Nesta edição do Expresso, na sua primeira entrevista, a secretária de Estado da Energia e Clima, Ana Fontoura Gouveia, revela que “muito brevemente” entrará em consulta pública em Portugal um novo capítulo do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) que contempla “uma estratégia nacional para o armazenamento”. “Para desenvolver o armazenamento em Portugal é preciso também um enquadramento normativo que assegure clareza aos investidores e estamos também a trabalhar nisso”, sublinhou Ana Fontoura Gouveia.

Com efeito, definir o quadro regulatório é uma das etapas-chave para desbloquear os investimentos em capacidade de armazenamento de que o país precisará nos próximos anos. O Decreto-Lei 15/2022, que reformulou as leis de bases do setor elétrico, já reconheceu o armazenamento como parte integrante do funcionamento do sistema, sujeitando-o a condições de licenciamento similares às da produção de eletricidade, mas com disposições algo genéricas sobre este tipo de nova atividade no mercado.

No que toca ao setor elétrico, o armazenamento pode assumir várias formas. Há um vasto leque de soluções que os atores do mercado vão explorando, com distintos níveis de maturidade e funcionalidade. Aí podemos incluir as baterias de lítio, com uma capacidade modular e muito flexível (de alguns kilowatts para uso doméstico a dezenas de megawatts para apoio a centrais solares e eólicas, por exemplo). Ou as centrais hidroelétricas com bombagem reversível (“reciclando” grandes volumes de água entre albufeiras a montante e a jusante, e com potências bastante superiores). Se as baterias podem ser ideais para auxiliar o sistema elétrico em ciclos diários e intradiários, as hídricas serão uma importante fonte de armazenamento sazonal (ainda que os seus sistemas de bombagem também lhes permitam atuar na resposta às necessidades diárias e intradiárias da rede elétrica). Uma outra opção que vai sendo trabalhada é a do hidrogénio: usar fontes renováveis de eletricidade verde na produção de hidrogénio, de forma a que este substitua o gás natural como combustível para novamente produzir eletricidade. A EDP tem um projeto-piloto para testar esta situação na sua central de ciclo combinado do Ribatejo, com uma pequena incorporação de hidrogénio verde e a Fusion Fuel desenvolveu um outro projeto que também usa o hidrogénio no auxílio à rede elétrica.

No ano passado uma análise da consultora Wood Mackenzie sobre as perspetivas do armazenamento de larga escala colocava Portugal no Top 10 dos países europeus em termos de nova capacidade a instalar no período de 2022 a 2031, com 2,1 gigawatt hora (GWh), menos de um décimo da projeção para o mercado líder, o Reino Unido, e pouco mais de um quarto da estimativa de capacidade de armazenamento para a vizinha Espanha. Estes números não incluem a capacidade das hídricas com bombagem.

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Uma outra análise da Bloomberg New Energy Finance, já do último mês de março, revelava que em 2022 entraram em operação 16 gigawatts (GW) de novas instalações de armazenamento (com uma capacidade de 35 GWh), mais 68% do que no ano anterior. A Bloomberg NEF estima que o crescimento deste mercado até 2030 seja de 23% ao ano, atingindo à escala global no final da década os 508 GW (1432 GWh), mas alerta para a falta de clareza das políticas públicas neste domínio.

Em Portugal o mercado das baterias de lítio de uso residencial é ainda incipiente. Os equipamentos já existem e vão sendo comercializados por algumas empresas que também apostam na venda de sistemas fotovoltaicos, de forma a minimizar as necessidades de consumo de eletricidade da rede. Mas o elevado custo das baterias não permitiu ainda uma verdadeira democratização desta solução. Ou, pelo menos, não ao ponto de uma massificação como aquela a que vamos assistindo na instalação de painéis solares para autoconsumo ou na venda de carros elétricos.

No mercado industrial, segundo fonte de uma das empresas mais ativas no país na montagem de projetos de autoconsumo para indústrias, “há interesse em instalar baterias mas sempre como complemento a centrais solares”. Quem, quando, quanto, onde e como são ainda questões em aberto.

Numa escala maior, vão surgindo várias intenções de investimento em sistemas de baterias acopladas a parques eólicos e fotovoltaicos. Em rigor, nos Açores já saltámos o plano das intenções: no mês passado a ilha Terceira inaugurou um sistema de baterias com uma potência de 15 megawatts (MW) e uma capacidade de armazenamento de 10,5 megawatts hora (MWh), um projeto que envolveu a EDA – Eletricidade dos Açores, Siemens, EDP, entre outras entidades. Vários outros projetos com baterias estão a ser desenvolvidos nos Açores e na Madeira: as ilhas são, em termos de energia, um mercado natural para a exploração do armazenamento.

Mas também em Portugal Continental há projetos para parques de baterias junto a empreendimentos solares e eólicos. No projeto com que ganhou o concurso para o ponto de ligação à rede do Pego (libertado pelo fim da central a carvão da Tejo Energia), a Endesa apresentou uma combinação de geração solar e eólica, com baterias e produção de hidrogénio verde. A componente de armazenamento no Pego será expressiva: 168 MWsegundo indicou o presidente da Endesa ao Expresso em junho do ano passado.

A maior central solar do país, a ser desenvolvida em Santiago do Cacém pela Prosolia e Iberdrola, terá uma potência de 1242 MW, e também incluirá algum armazenamento, embora numa escala menor do que a do projeto inicial. Segundo a declaração de impacto ambiental (favorável mas condicionada), o consórcio irá instalar 30 MW de baterias (bastante menos que os 257 MW que constavam do primeiro desenho do projeto), num total de 24 contentores de 1,25 MW cada, e com uma capacidade total de armazenamento de 50 MWh.

À escala do sistema elétrico nacional, os 30 MW de baterias de Santiago do Cacém são uma capacidade relativamente reduzida para funcionar como garantia de segurança de abastecimento (desse ponto de vista serão mais úteis os 880 MW de capacidade de bombagem hídrica que a Iberdrola tem no complexo do Tâmega). Mas esse parque de baterias no Alentejo será, para a Prosolia e Iberdrola, uma aprendizagem, permitindo às duas empresas reservar uma pequena parte da eletricidade gerada na mega-central para entrega à rede em diferentes períodos do dia (ou da noite).

Embora sejam poucos os investimentos em baterias já no terreno no nosso mercado o tema começa a ganhar tração (a Galp está de olho no tema da inovação e recentemente investiu na norte-americana 6K). A Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) tem em curso uma consulta pública sobre a revisão de uma série de regulamentos da eletricidade e no que incide sobre as redes inteligentes há um ponto específico para as instalações de armazenamento. Nesse ponto a ERSE propõe adaptar o regulamento das redes inteligentes de forma a prever as regras particulares aplicáveis à leitura das instalações de armazenamento. Um de muitos aspectos que Portugal terá de consolidar no plano regulamentar e legal para que as baterias ganhem o seu espaço no mercado.

A mesma ERSE agendou, aliás, para 13 de abril uma conferência sobre “descentralização e flexibilidade”, com um foco nos “mercados locais de energia”, tema que ganhará relevância à medida que se vão concretizando as largas dezenas de projetos de comunidades de energia que aguardam licença. Para que essa “descentralização” da produção e consumo de eletricidade se materialize será necessário ter geração renovável, inteligência na rede e, em alguns casos, sistemas de baterias que façam localmente os equilíbrios necessários para otimizar a distribuição de energia numa dada comunidade ou mercado local.

No mês passado a Comissão Europeia emitiu uma recomendação que incide precisamente sobre o armazenamento, notando que “o armazenamento de energia pode desempenhar um papel crucial na descarbonização do sistema energético, contribuindo para a sua integração e para a segurança do abastecimento”. Nesse documento, Bruxelas indica que os Estados-membros devem nos respetivos planos nacionais de energia e clima (Portugal está a rever o seu) identificar as necessidades de flexibilidade dos seus sistemas energéticos a curto, médio e longo prazo. E indica também que os países devem ponderar adotar procedimentos “competitivos” para contratar soluções de flexibilidade. É admitida a possibilidade de remunerar os sistemas de armazenamento com mecanismos de capacidade, ou seja, modelos em que determinados atores do sistema elétrico têm uma remuneração fixa, previsível, pela segurança que oferecem à rede elétrica: se um parque eólico pode ter uma queda súbita da sua produção, é preciso assegurar que alguma fonte de eletricidade está imediatamente disponível para injetar na rede, evitando apagões, e as baterias podem cumprir esse papel.

O leque de serviços que as baterias podem prestar ao sistema também abrangerá a situação inversa. Se numa dada hora as centrais solares ou os parques eólicos estiverem a produzir mais energia do que aquela que a rede consegue acomodar, das duas uma: ou essas centrais reduzem a sua produção imediatamente (desperdiçando o recurso natural à sua disposição) ou canalizam uma parte para as baterias (sem desperdiçar o recurso, e guardando a energia para injetarem na rede mais tarde, quando ela for de facto necessária… e mais valiosa).

Um estudo divulgado no mês passado pela Comissão Europeia, e liderado pelo instituto Fraunhofer, analisou a fundo o tema do armazenamento de energia na Europa, não só olhando para os desenvolvimentos dos últimos anos mas também abordando as perspetivas futuras. E uma das conclusões curiosas é que de uma amostra de oito países Portugal surge como aquele que em 2030 deverá ter uma maior amplitude média de preços no mercado diário de eletricidade. Segundo o documento, Portugal terá um “spread” de 25 a 28 euros por megawatt hora (MWh), quase o dobro do previsto, por exemplo, para a Finlândia, e também acima do estimado para a Alemanha. O que significa? Significará que a oportunidade de negócio para quem tenha baterias poderá ser especialmente interessante em Portugal, já que quanto maior for a diferença entre preços horários mínimos e máximos num mesmo dia maior a receita que os donos das baterias podem encaixar (ao vender a energia à rede nos períodos mais caros), rentabilizando o investimento feito.

É neste contexto que também no plano industrial vão surgindo projetos de grande escala que podem fazer de Portugal uma referência na Europa na cadeia de valor das baterias. Algumas das agendas de inovação que asseguraram fundos do PRR estão posicionadas nesta área, como é o caso da iniciativa “New Generation Storage”, que é liderada pela DST Solar e junta 31 empresas. A agenda da “Cadeia de Valor de Baterias”, liderada pela Galp, e com investimentos de 914 milhões de euros, só deverá firmar o seu contrato no segundo semestre, estando ainda dependente do aval de Bruxelas, como o Expresso conta esta quinta-feira.

Baterias a injetar na rede durante a noite a produção solar armazenada durante o dia? Carros a prestar serviços ao sistema elétrico? Esse pode parecer um cenário distante, mas a verdade é que a forte expansão da capacidade renovável na Península Ibérica vai enviando sinais cada vez mais frequentes de que o sistema elétrico vai mesmo precisar, mais cedo do que tarde, de capacidade de armazenamento. Esta quarta-feira Espanha alcançou um novo recorde de potência fotovoltaica em produção (14,9 gigawatts), e Portugal também também vindo a alcançar registos recorde na produção solar. O mercado ibérico já teve nos últimos dias várias horas de preço nulo, dada a abundância de renováveis a injetar na rede. Mas se os preços zero são aparentemente o paraíso para os consumidores ibéricos, também podem desincentivar os promotores a investir em mais capacidade… a menos que tenham ferramentas para aproveitar e valorizar economicamente os excedentes de energia de alguns períodos do dia. E aí as baterias podem ser um instrumento central para marcar o ritmo da transição verde.

 

DESCODIFICANDO

LDES. Acrónimo para “Long duration energy storage”, ou armazenamento de energia de longa duração. Abrange soluções que consigam deslocar volumes de energia em períodos horários relativamente prolongados. Se há baterias que já têm ciclos de descarga de até 10 horas, também há necessidades no sistema elétrico de garantir flexibilidade em períodos maiores, como semanas ou meses, e aí a bombagem hidroelétrica ou soluções mecânicas, como o armazenamento de ar comprimido ou o já referido hidrogénio verde. Um estudo norte-americano de 2017 estimou que as soluções LDES permitirão evitar 35% a 88% do curtailment, isto é, o corte forçado de produção renovável (ou seja, dos volumes que em alguns períodos as centrais solares e eólicas produzem a mais face à capacidade que a rede consegue absorver com o consumo registado nesse momento).

VALE A PENA LER

O Joint Research Center, da Comissão Europeia, publicou agora em março um estudo sobre as necessidades de flexibilidade e o papel do armazenamento nos sistemas elétricos do futuro na Europa. Esse trabalho estima quais as necessidades que o mercado europeu poderá ter em 2030 e 2050. O exercício feito prevê que no final desta década a União Europeia precisará de 288 terawatt hora (TWh) de flexibilidade por ano, o equivalente a quase seis vezes o consumo anual de eletricidade de Portugal.

 

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