CONHECE QUIRIO CATANHO?  

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Dr. João Soares Tavares

CONHECE QUIRIO CATANHO?       

No século passado, a fim de escrever a biografia do barrosão João Rodrigues Cabrilho, o descobridor da Costa da Califórnia no século XVI, segui os seus passos pelos diferentes territórios onde viveu. Os seus passos que também foram os meus levaram-me à Guatemala. Outrora, este país da América Central foi terra dos Maias um povo culturalmente evoluído. Quando no século XVI aí chegou o exército dos conquistadores europeus na maioria espanhóis, a cultura Maia estava em declínio. Cabrilho entrou na conquista desse vasto território e na fundação da capital colonial denominada Santiago de los Caballeros ou Santiago da Guatemala, a primeira cidade fundada por europeus na região guatemalteca, que anos depois transitou para outro lugar. Cabrilho fixou na cidade a sua residência familiar. Pensei, nesses anos idos de setenta, que iria encontrar na hoje designada Antigua, alguma pista sobre o navegador português.

Quando entrei numa biblioteca da cidade esperançado em descobrir um documento esclarecedor que me trouxesse alguma luz sobre o assunto, verificou-se um daqueles acasos que deixam o investigador perplexo pela singularidade do acontecimento. A bibliotecária ao constatar a presença de um português em localidade tão remota questionou-me se procurava descobrir algum dado sobre Quirio Cataño. (Utilizo a designação local)

Quirio Cataño! Quem é? – Perguntei-lhe.

Perante a minha surpresa respondeu:

Quirio Cataño foi um escultor e pintor português muito famoso na Guatemala durante a época colonial.

Aconteceu, assim, o meu primeiro “contacto” com Quirio Cataño. Expliquei-lhe ao que ia. A admiração da senhora ao falar-lhe sobre o português Cabrilho, que ignorava, foi igual à minha quando me informou sobre Quirio Cataño.

Sabe-se pouco do famoso artista que deixou obra a milhares de quilómetros da sua Pátria, um dos muitos portugueses emigrados durante o século XVI para o Novo Mundo. Quirio Cataño teria vivido e morrido ignorado se não fosse um escultor de excepção. A sua obra é motivo de admiração em diferentes territórios da Hispano-América.

Conforme referi, a preocupação primeira da minha deslocação à Guatemala foi seguir pistas do navegador Cabrilho. Depois, pesquisei os documentos possíveis relacionados com o afamado escultor que no século XVI viveu em Santiago da Guatemala.

Segundo a tradição oral bem enraizada nos guatemaltecos é português. Documentos e livros publicados na Guatemala fazem igual menção. Qual seria o sobrenome original? Na genealogia portuguesa e espanhola encontrei respectivamente os sobrenomes “Catanho” e “Cataño”. Atendendo à similitude da pronúncia, o sobrenome original do português seria provavelmente “Catanho”. Embora seja a hipótese mais provável, não é de excluir a possibilidade de um sobrenome semelhante.

Na genealogia portuguesa existe também o termo “Castanho”. A tradução espanhola é “Castaño”. Terá havido uma síncope do “s” em “Castaño” originando Cataño? Os cronistas espanhóis coevos perante um nome estrangeiro utilizavam o nome correspondente espanhol. Não existindo correspondência espanholizavam o nome.

Em Portugal não descobri qualquer registo documental sobre a naturalidade do escultor. Transmontano? Minhoto? Beirão? Provavelmente nunca saberemos, como aliás se verifica com tantos portugueses emigrados no século XVI para as “Índias Ocidentais” ou “Índias de Castela”, alguns clandestinamente, à procura de melhores condições de vida, nesses tempos remotos de descobrimento e conquista.

No século XVI viveu na ilha da Madeira uma família nobre de nome Catanho. O historiador açoriano Gaspar Frutuoso (1522-1591), na sua obra Saudades da Terra, também refere essa família, nomeadamente o espírito empreendedor de Rafael Catanho. Este construiu uma levada com alguns quilómetros para servir o seu engenho de açúcar, tendo gasto mais de cem mil cruzados, uma quantia significativa para a época. Um membro dessa família chamava-se Quirio Catanho. Casou com D. Maria Cabral da qual teve uma filha, D. Violante Catanho.

Não existem dados documentais que permitam relacionar o nome do escultor a essa família. É apenas uma hipótese.

Por não existir uma certeza quanto ao nome original, provavelmente Quírio Catanho ou Quírio Castanho, vou continuar a designá-lo Quirio Cataño, tal como aparece escrito nos documentos pesquisados na Guatemala (fig1.).

Fig1 – Monumento na praça central de Antigua (Foto JST)

A casa do português pintor, mais célebre como escultor, localizava-se na Rua dos Passos Perdidos, não muito distante da Praça Central de Santiago. Aí funcionava também a sua oficina. Procurei descobri-la. Nada resta do edifício. (A cidade original presentemente em restauro, foi destruída por uma catástrofe).

A formação artística de Quirio Cataño terá decorrido em Portugal entre 1556 e 1575. Chegou ao Novo Mundo pelo ano de 1580. Provavelmente viveu durante algum tempo em Hispaniola (actual Haiti) a primeira Antilha a ser colonizada, pois deixou obra nessa ilha.

Na última década do século XVI viveu na Guatemala. É considerado o seu período mais produtivo.

Do seu casamento com Dona Catarina Mazariegos há referências sobre uma filha de nome Rosa. Existem mais certezas sobre o filho Jerónimo que foi padre. Este não continuou a obra artística do pai. É desconhecido qualquer trabalho de sua autoria (Fig2.).

Fig2 – La Escuela de Cristo (Foto JST)

– Não deixe de visitar o templo de La Escuela de Cristo – disse-me a simpática bibliotecária a quem devo a revelação do escultor. Assim fiz.

 

 

 

Fig3 – Obra de Quirio Cataño no interior do templo La Escuela de Cristo (Foto JST)

Ao contrário da maioria dos monumentos de Antigua e de outros edifícios construidos basicamente de argamassa, danificados pelos cataclismos já referidos que atingiram a região, o templo de La Escuela de Cristo resistiu em resultado da edificação em pedra vulcânica conforme se observa na figura. A surpresa estava reservada para o seu interior: uma escultura muito perfeita de Cristo crucificado conhecida por Santo Cristo das Misericórdias (Fig. 3).

Conforme documento facultado pelo prior do templo de La Escuela de Cristo que entrevistei, é uma obra de Quirio Cataño. Também ele estava convencido da nacionalidade portuguesa do escultor. Porém, o seu nome escrito em espanhol pela razão já aludida, serve de motivo para à semelhança de outros portugueses que se notabilizaram nas Índias de Castela, como por exemplo João Rodrigues Cabrilho, alguns desviarem a sua nacionalidade para Espanha. Já não estranho.

O Santo Cristo das Misericórdias foi produzido em finais do século XVI quando a igreja ainda não existia, pois a sua fundação data de 1664. Como foi ali parar a obra do mestre português numa data em que ele já tinha falecido?

A explicação parece lógica: Em 1554, os franciscanos estabeleceram-se em Santiago onde construíram a ermida de Vera Cruz, que, posteriormente, mudaria de nome para ermida de S. Miguel. Certamente, Cataño esculpiu o Santo Cristo das Misericórdias para essa ermida. Com efeito, o templo de La Escuela de Cristo edificado conforme referi, em meados do século XVII, resultou da ampliação da ermida de S. Miguel, correspondendo na actualidade à capela-mor.

Fig4 – A face do Cristo negro de Esquipulas (Foto JST)

O Santo Cristo das Misericórdias é muito considerado e venerado sobretudo durante a Semana Santa. Para alguns críticos de arte é considerada a obra maior de Quirio Cataño.Todavia, a escultura que catapultou o mestre, foi o célebre Cristo negro de Esquipulas, localidade da província de Chiquimula. Mede cerca de um metro e meio de altura e tem uma face muito expressiva. (Fig. 4) A característica que a distingue é a cor. Os guatemaltecos sempre a conheceram com a cor preta. Já os antepassados diziam o mesmo – afirmam. Nem todos compartilham a mesma opinião. Para alguns críticos a cor da escultura não é original, pois resultou do fumo das velas a que foi submetida durante séculos. Outros contrapõem: Quirio Cataño utilizou a cor negra porque inspirou-se na cor da pele dos habitantes de Chiquimula da etnia Chorti, particularmente representada nessa região.

Na Guatemala existem várias teorias e algumas viraram lendas sobre a procedência do célebre Cristo negro de Esquipulas.

Na generalidade, o guatemalteco comum desconhece as obras esculpidas pelo mestre escultor, mas, se perguntarmos na rua a qualquer pessoa pelo Cristo negro de Esquipulas, poucas não o relacionam com o português Quirio Cataño, tal é a sua projecção naquele território.

Para se compreenderem as razões que motivaram a origem e a localização do Cristo negro numa região no século XVI inóspita, de caminhos precários, distante duas centenas e meia de quilómetros da capital onde Quirio Cataño vivia e tinha a sua oficina, teremos de recuar aos anos vinte desse século.

A província de Chiquimula foi pacificada em 1525 cerca de um ano após a fundação da primeira capital da Guatemala. Com o exército dos conquistadores seguia sempre um ou mais frades. Tinham a preocupação de evangelizarem e pregarem a religião católica aos nativos. Os primeiros anos foram complicados. Alguns indígenas não suportaram a privação da sua liberdade anterior. Revoltaram-se contra os invasores e declararam-se independentes em Abril de 1530. Anos depois o exército regressou para subjugar a região. A rebelião somente terminou com a assinatura de um acordo de paz entre os conquistadores e os naturais. Entretanto, os missionários continuaram o seu trabalho de evangelização e construíram uma ermida. A certa altura os habitantes de Esquipulas sentiram a necessidade de aí ser colocada uma imagem de Cristo crucificado tão falado pelos missionários. No ano de 1594, aproveitando a colheita de algodão que rendera bom dinheiro, encarregaram os missionários de procurarem concretizar o seu desejo. Escolhido o escultor, Quirio Cataño, então já reconhecido, o contrato foi assinado para a execução da obra em 29 de Agosto de 1594, que veio a concluir em 4 de Outubro desse ano.

Fig5 – Fotografia antiga de Esquipulas com o templo em 2º plano (Foto AGHG)

Alguns guatemaltecos de Esquipulas deslocaram-se então a Santiago a fim de recolherem o tão desejado Cristo crucificado. Durante o caminho de regresso tiveram de parar em todos os lugares povoados pois os seus habitantes já conhecedores da história queriam apreciar a beleza daquela obra, rogando-lhes que lhes permitissem contemplar pelo menos durante um dia a magnífica escultura de Cristo. Assim começou uma grande peregrinação por todos os locais aonde estacionou a famosa obra de Quirio Cataño. Passaram cerca de cinco meses. Em Março de 1595, o crucifixo chegou finalmente a Esquipulas. Poucos anos depois, a ermida onde fora colocado já era pequena para acolher os peregrinos que dos diferentes lugares do território acorriam em oração. Houve necessidade de construir um templo mais amplo. Este somente foi concluído em finais do século XVII. Cerca de meio século depois, também aquele já não correspondia às necessidades. Finalmente, em 1759 edificaram uma grandiosa basílica num dos campos de algodão que dois séculos antes permitiu aos naturais de Esquipulas a verba necessária para mandarem esculpir o crucifixo a Quirio Cataño. Naquele ano, a tão venerada obra do artista português transitou para essa basílica. Uma fotografia antiga a que tivemos acesso do Archivo General de Historia de Guathemala, revela-nos a singela povoação de Esquipulas e em fundo o templo que preserva a obra de Quirio Cataño. (Fig. 5).

Presentemente, o Cristo negro é venerado no santuário do século XVIII, não muito distante da fronteira da Guatemala com Honduras. A festa principal decorre na Quinta-feira da Ascensão. É impressionante. Nesse dia, acorrem milhares de peregrinos guatemaltecos e de outros países, sobretudo do México, de Honduras, de El Salvador, mas também dos Estados Unidos da América e até da Europa. Outrora, os romeiros chegavam a percorrer centenas de quilómetros a pé até ao local da romaria. Alguns ainda hoje mantêm essa tradição.

A semana Santa de Antigua é muito afamada, mas, é o Cristo negro que faz deslocar o maior número de visitantes.

Em 1996 a basílica de Esquipulas teve a visita de um peregrino célebre. O Papa João Paulo II orou no dia 6 de Fevereiro desse ano perante o Cristo negro, esculpido quatro séculos antes por um português talentoso deslocado do seu país.

Quirio Cataño faleceu num dia impreciso de meados de 1622. Não existem dados exactos sobre a localização do túmulo que guarda os seus restos mortais. Pela tradição oral e segundo me confirmou o Prior do templo de La Escuela de Cristo, foi sepultado na ermida de S. Miguel que actualmente corresponde à capela-mor daquele templo da cidade de Antigua representado na figura 2.

Perguntei-lhe se existia algum documento escrito.

– Não conheço, mas há a tradição, não duvide – respondeu-me de imediato. Perante resposta tão certeira teria eu razões para duvidar?

Fig6- Placa em Antigua dedicada a Quirio Cataño (Foto JST)

Quirio Cataño é recordado em todo o território na toponímia de ruas, padarias, pastelarias, restaurantes, cafés, hotéis… Em 12 de Março de 1995, no quarto centenário da colocação do Cristo negro em Esquipulas, – a escultura mais simbólica do mestre português e, seguramente, a mais conhecida na Hispano-América – a cidade de Antigua prestou-lhe expressiva homenagem. Além de diferentes cerimónias comemorativas foi descerrada na antiga capital colonial, uma placa evocativa que enaltece a obra e perpetua a memória do notável escultor. (Fig. 6)

(João Soares Tavares escreve de acordo com a anterior ortografia)

Legendas para as figuras:

Fig1 – Monumento na praça central de Antigua (Foto JST)

Fig2 – La Escuela de Cristo (Foto JST)

Fig3 – Obra de Quirio Cataño no interior do templo La Escuela de Cristo (Foto JST)

Fig4 – A face do Cristo negro de Esquipulas (Foto JST)

Fig5 – Fotografia antiga de Esquipulas com o templo em 2º plano (Foto AGHG)

Fig6- Placa em Antigua dedicada a Quirio Cataño (Foto JST)

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