Será difícil encontrar na história política portuguesa uma dupla mais marcante (e tão fascinante) como Marcelo-Costa. Já assistimos a inúmeras metamorfoses desta relação, desde o sincronismo Dupond e Dupont ao jogo do gato e do rato à lá Tom & Jerry, mas talvez estejamos, para citar a metáfora utilizado pelo deputado liberal Carlos Guimarães Pinto no debate parlamentar de ontem, a entrar numa fase mais violenta, ao estilo do Coyote e do “Beep Beep”.
Se bem se recordam os leitores, o desastrado e faminto coiote tenta por todos os meios apanhar o Papa-Léguas, falhando sempre de forma estrondosa (e Guimarães Pinto queria dizer precisamente que acontece o mesmo a todos os planos de Costa). Pois bem, o primeiro-ministro parece ter lançado uma bigorna para cima do Presidente da República com uma frase dita ontem no Parlamento (fui ouvir de novo para citar palavra por palavra): “Eu prefiro funções executivas a outro tipo de funções políticas, é que nas outras funções fala-se, fala-se, fala-se, mas no executivo ou se faz ou não se faz e a medida do que se faz está nos resultados”.
Note-se a elegância de “outro tipo de funções políticas” – parece que só faltou a Costa dizer que falava de cargos cuja residência oficial se situa numa freguesia de Lisboa que começa por B e termina em M. Resta saber em cima de quem cai a bigorna, porque nesta relação a identidade do Papa-Léguas e do coiote parecem alterar-se de acordo com as circunstâncias.
Não é a primeira vez que os dois se parecem zangar, mas as medidas para a habitação tornaram-se uma pedra bem incómoda no sapato institucional em que coabitam. Em boa verdade, Costa pode dizer que nem sequer foi ele que começou. No início da semana, dificilmente Marcelo poderia ter sido mais fulminante do que quando proferiu esta frase sobre o pacote governamental: “Tal como está concebido, logo à partida é inoperacional, quer no ponto de partida, quer no ponto de chegada”.
Na noite seguinte, a promulgação pelo Presidente da primeira parte do pacote veio acompanhada de um pedido de mais medidas por via fiscal, o que motivou uma incomum resposta de São Bento noite dentro: tais medidas estão previstas, mas ainda estão em discussão pública e têm de ir ao Parlamento.
Para além disso, o que nos trouxe o debate na Assembleia da República? André Ventura continuou a pedir demissões no Governo como quem muda de camisa, PCP (e também Bloco) insistem na fixação de preços, a Iniciativa Liberal cunhou uma nova expressão (“neo-gonçalvismo selvagem”), o PSD lá foi cumprindo os seus mínimos olímpicos e no resto o Governo marcou o debate.
Os detalhes foram poucos ou nenhuns, mas ficou a saber-se que o executivo pretende baixar o IVA dos bens alimentares (mas garantindo que a redução fica do lado dos consumidores) e que a Função Pública vai ter novos aumentos (uma vez que os acordos assinados em outubro tiveram como base uma inflação de 7,4%, que acabou por ficar nos 7,8%). Para além disso, a ministra da Presidência revelou ontem que há a intenção de acelerar a progressão de quase 350 mil funcionários públicos, para “corrigir os efeitos” do congelamento das carreiras, e há medidas na calha para as famílias, à espera dos números finais da execução orçamental, amanhã.
“A grande notícia na sexta-feira não vai ser o número do défice, vão ser os apoios que vamos ter liberdade para decidir”, frisou o primeiro-ministro. Vem aí mais um cheque?
Quanto a temas mais sentimentais, fique o leitor a saber que há tempo de sobra para uma reconciliação: depois de participar no Conselho Europeu, que arranca daqui a umas horas com um almoço em que participa António Guterres, Costa vai encontrar-se com Marcelo na República Dominicana, onde se realiza a 28.ª Cimeira Ibero-Americana. E regressam juntos à Europa para assistir ao jogo da seleção de futebol no Luxemburgo, no domingo.
Mais tarde ou mais cedo ficaremos a saber se esta desavença foi conjuntural – com Marcelo pressionado pela opinião pública e pela intervenção de um certo ex-Presidente e ex-primeiro-ministro sobre habitação no sábado – ou se marca mesmo um novo tempo político. No Expresso da Manhã, a análise de Ângela Silva é que não se trata de uma ruptura, mas Costa parece cansado daquele jeito tão próprio do seu ex-professor de falar sobre tudo, em todo o lado, ao mesmo tempo.
Fonte: Expresso