CORÇO DO GERÊS I

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Dr. João Soares Tavares

CORÇO DO GERÊS (*)                                                      Capítulo I

 João Soares Tavares

O corço (Capreolus capreolus L.) é um gracioso cervídeo que aparece nos mais variados habitats, desde a Europa até à Ásia Oriental. As suas características permitem inferir que habitava originariamente as regiões limítrofes das estepes e regiões arbustivas da Europa e da Ásia.

Relativamente a Portugal, o Padre António Carvalho da Costa referia na sua Corografia Portugueza, 1706-1712, a abundância de corços na serra do Gerês.

Na primeira metade do século XIX o número de exemplares ainda era significativo no nosso país, distribuídos em particular pelos bosques de folhagem caduca de algumas serras ao norte do rio Douro, nomeadamente nas serras que em Maio de 1970 formaram o Parque Nacional da Peneda-Gerês (Peneda, Gerês, Soajo, Amarela). Têm preferência por um habitat onde existam florestas com zonas de mato e prado próximas, que oferecem à paisagem o aspecto de “mosaico” tão característico nalgumas serras nortenhas.

Fig.1 – Corço adulto

As regiões a sul do Rio Douro não eram o seu habitat preferencial, embora em anos mais recentes tenham sido realizadas tentativas de introdução nas serras de Montemuro, Arada, Freita e Lousã. Não deve ser confundido com o veado (Cervus elaphus L.)  ou gamo (Dama dama L.), os outros cervídeos da fauna portuguesa mais corpulentos e com hastes bem diferentes. O corço adulto apresenta um comprimento entre 1, 20 e 1, 30 metros e a altura ao garrote com cerca de 70 centímetros.

Durante anos foi impiedosamente perseguido e quase desapareceu das nossas serras. Quando no início dos anos setenta li numa revista da responsabilidade da Secretaria de Estado da Agricultura a narração de uma montaria aos corços na serra do Gerês, realizada em 15, 16 e 17 de Setembro de 1908 onde foram alvejados 15 corços, (1)pensei que o pequeno cervídeo já estaria extinto. Recordei então o urso, o último dos quais, segundo Contador de Argote foi morto no ano de 1650 na serra do Gerês e, a Cabra do Gerês (Capra pyrenaica lusitânica) dada como extinta entre 1890 e 1892. (2)  Exemplares desta cabra existiam em número significativo na serra do Gerês nos princípios do século XIX. O último exemplar capturado vivo e fotografado verificou-se na Albergaria lugar daquela serra, em 20 de Setembro de 1890. (3) Transportada para o Jardim Zoológico de Lisboa, veio a morrer poucos dias depois “certamente por velhice”. Do seu estudo encarregou-se o Prof. Ricardo Jorge do qual deu conhecimento no seu livro Caldas do Gerês editado em 1891 e num artigo do jornal O Século de 31 de Agosto de 1908.

A montaria aos corços na serra do Gerês descrita na publicação citada (Ver nota 1), teve segundo o narrador grande ressonância. Vou reproduzir um excerto da narração. Não pormenorizarei a matança dos 15 exemplares porque a considero dispensável, prefiro transcrever um trecho que espelha uma imagem diferente, essa sim, a merecer realce: “… tão cedo não voltará a ver-se um quadro tão grandioso de paisagem e espectáculo animado que oferecia a chã de Leonte, nessa manhã para sempre lembrada do dia 15 de Setembro.” Para felicidade dos corços o narrador acertou, terá sido essa a última montaria com um número tão elevado de caçadores, embora a matança fosse constante nos anos seguintes. Prossegue a narrativa:  “Em redor do planalto, onde os 78 caçadores assistiam impacientes ao sorteio das portas, as grandes montanhas estampavam nos céus os monstruosos dorsos, coloridos de quartzo branco e amarelo e de feldspato róseo. Fulgores de mica coroavam as cristas escalvadas pelos grandes traumatismos geológicos, e torreões de penedia pareciam vigiar, sobranceiros à floresta, o vasto âmbito, ressoante de águas abrangido pelas agrestes imponências da serra de cujos flancos, vertem, borbulhantes, as nascentes termais. (…) Enfiando pelo vale, até à portela do Homem, o olhar caminhava sobre o pálio movediço dos arvoredos, que vão morrer nas linhas sinuosas da fronteira, sobre o pano de fundo da monótona aridez da serrania galega, de cambiantes cinzentos e a que a distância empresta uma fluidez de esquisso.” (4)

Fig. 2 – Caçada ao cervideo na Serra do Gerês

Prova de que o morticínio prosseguiu, é a fotografia reproduzida na figura 2 obtida por certo antes de 1939, ano da publicação da Lei que proibiu a caça ao corço. Sobressaem os dois exemplares de corço mortos e a pose guerreira dos caçadores. Foi publicada na Gazeta Mobil nº 186, (1974), Série: “Parque Nacional da Peneda-Gerês”, a quem se agradece a reprodução. Anexa estava a seguinte legenda: “Curiosíssima foto, amavelmente emprestada por pessoa de Montalegre. Não conseguimos identificar os caçadores, nem precisar a data (sem dúvida princípio do século). Quem poderá fornecer a identidade dos caçadores?

Imagem simbólica do Parque Nacional da Peneda Gerês

Não obstante a Lei de 1939, o corço continuou a ser alvo dos caçadores furtivos motivando o seu quase desaparecimento nas serras nortenhas. Embora não possuindo uma confirmação científica, crê-se, que um reduzido número de exemplares se refugiou na serra do Gerês, por muitos considerada o seu habitat privilegiado, tendo conseguido sobreviver. Com o título: “Corço do Gerês”, pretendo distinguir a serra que o terá salvo do extermínio. Por justificada razão o Parque Nacional da Peneda-Gerês criado 1970 escolheu para o seu símbolo identificativo uma cabeça do gracioso cervídeo. (Fig. 3)

(*) Este texto jornalístico foi adaptado do estudo realizado pelo signatário durante os anos oitenta do século passado, publicado na Revista NOESIS nº 12, Lisboa Novembro de 1989.

(A reprodução do texto e fotografias que compõem este trabalho só é autorizada mencionando a origem.)

NOTAS:

  • MENDES, José Lagrifa, Notícia sobre montarias nas serras do Noroeste, Edição da Secretaria de Estado da Agricultura, 1968
  • MENDES, cit.
  • Tenho conhecimento que em anos mais recentes alguns exemplares da cabra selvagem provenientes de um parque espanhol passaram à serra do Gerês.
  • MENDES, cit.
  • (João Soares Tavares escreve segundo o anterior acordo ortográfico)

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