D. SANCHO I E O POVOAMENTO DA TERRA DE BARROSO

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Dr. João Soares Tavares
  1. SANCHO I E O POVOAMENTO DA TERRA DE BARROSO

João Soares Tavares

Já dediquei neste jornal uma crónica a D. Afonso III, rei que se empenhou terminantemente no povoamento da Terra de Barroso. Hoje, vou expor uma panorâmica não exaustiva sobre a actividade desenvolvida na mesma área pelo seu avô – D. Sancho I.

Inicio esta crónica com uma explicação prévia destinada a quem estará menos familiarizado com os primórdios da nacionalidade quando o reino estava dividido em terras governadas por um tenens (tenente). Uma, a Terra de Barroso, abrangia um vasto território. Incluía todo o concelho de Montalegre, a quase totalidade do concelho de Boticas, (excepto uma freguesia), as freguesias Ruivães e Campos do concelho de Vieira do Minho, algumas aldeias do concelho de Ribeira de Pena e um território com as aldeias Rubiás, Santiago e Meaos que formaram o designado Couto Misto, hoje pertencente à Galiza.

  1. Sancho I (1154-1211) ficou conhecido na História merecidamente com o cognome de Povoador, pois foi o primeiro grande obreiro do povoamento do reino numa época em que a escassez de habitantes era notória.

    Fig. 1 – Selo dos Correios de Portugal com o retrato de D. Sancho I (Arquivo pessoal)
  2. O monarca, segundo rei da primeira dinastia, ascendeu ao trono em finais de 1185, depois de alguns anos na regência do reino. Essa experiência propicia-lhe o conhecimento da existência de um território de ocupação flutuante na região raiana, onde se localizava a antiga Terra de Barroso. Ao desejo do rei leonês – com quem mantinha um braço de ferro desde 1178 quando fizera o assalto a Triana (Sevilha), feito de armas reconhecido – de ocupar esse território da fronteira, juntavam-se os nobres da região, que alternavam a sua lealdade ao rei de Portugal e ao rei de Leão. Dentre eles destacavam-se os Soverosa, senhores privilegiados da corte e da região onde detinham a sua tenência.

Desde Maio de 1176 era mordomo da cúria Vasco Fernandes de Soverosa, nobre poderoso com ligações às linhagens galegas e às linhagens do Entre Douro e Minho.

No Verão de 1186 houve um desentendimento entre D. Sancho I e Vasco Soverosa que fora sempre fiel a D. Afonso Henriques e a D. Sancho I, mordomo durante dez anos. A discórdia teve consequências profundas pois motivou o afastamento do Soverosa. A nomeação recaiu em Mem Gonçalves de Sousa também membro de uma família notável – os Sousa – que andou ausente dos cargos mores da cúria de D. Afonso Henriques.  Esta família detinha as suas tenências na vizinhança das tenências dos Soverosa, que provocava enorme rivalidade entre as duas linhagens. Sessenta e cinco anos depois, no reinado de D. Afonso III, os Sousa continuavam em proeminência nessa região nortenha. Na tenência de Barroso estava Gonçalo Garcia de Sousa e nas tenências das Terras de Basto, de Aguiar da Pena e de Panoias era tenente Mem Garcia de Sousa, irmão daquele. (Indicaram-se apenas os Sousa em tenências de terras dos actuais distritos de Vila Real e Braga). Pelo contrário, na mesma data os Soverosa tinham desaparecido das Tenências que anteriormente governaram.

Os documentos não pormenorizam, mas foi um problema sério, tratou-se provavelmente de um caso de infidelidade ao rei, porque Vasco Soverosa mal desapareceu da corte de D. Sancho I obteve a tenência leonesa de Zamora, cargo que inicia em 27 de Outubro de 1186 e ainda se mantinha em 1188. (1). Segundo um documento do rei leonês Fernando II, em Julho de 1187 Soverosa recebeu várias vilas e seus termos como recompensa pelos bons serviços prestados ao rei. (2)

Fig. 2 – Castelo de Piconha, desenhado por Duarte D´Armas no século XVI (Livro das fortalezas de Duarte D`Armas)

Infere-se que D. Sancho I decidiu deslocar-se ao norte onde o Soverosa detinha a tenência da terra portuguesa para o reprimir e, em simultâneo, com a sua presença e poderio militar marcar a ocupação daquele território raiano. (3) Parece coerente admitir serem as razões expostas que motivaram pouco depois do Verão de 1187 o fossado a São Paio da Piconha. (4)

Os documentos de D. Sancho I não são pormenorizados sobre os meios empregues no fossado e somente algumas pistas deixadas em documentos posteriores provam a sua realização, designadamente: “quando ibat rex domino Sanchio pró a Sancte Pelagio de Piconia”. (5)

Parece certo: a relação entre D. Sancho I e o Barroso iniciou-se quando o rei se deslocou pessoalmente a São Paio da Piconha, tendo outorgado forais ao Castelo de Piconha e a Padronelos no referido ano de 1187 ou pouco tempo depois. Embora a documentação da Chancelaria referente ao rei Povoador seja omissa relativamente aos forais citados comprova-se: o Castelo de Piconha recebeu foral de D. Sancho I. Temos dele conhecimento pelo foral de D. Manuel I outorgado a 18 de Janeiro de 1515. (6). Em Tourém tinha assento a sede do referido concelho. No castelo vivia apenas o alcaide e uma pequena guarnição.

O conhecimento do foral outorgado por D. Sancho I a Padronelos é fornecido por uma carta de confirmação de D. Afonso III assinada em Coimbra a 5 de Outubro de 1265. (7)

Os documentos chegados até ao presente silenciam a data precisa da concessão dos forais referidos. Todavia, não é despiciendo admitirmos serem uma consequência da deslocação do monarca à Terra de Barroso ao verificar a premência do povoamento da região raiana e a necessidade de uma defesa mais eficaz da fronteira. Aliás, as Inquirições realizadas em reinados posteriores, indiciam de uma maneira embora indefinida uns “privilégios” distribuídos por D. Sancho I aqui e ali, que nos levam a sugerir estarem no embrião das honras de Barroso. (8) O rei D. Sancho I “honrava” com a sua presença os “privilégios” concedidos.

A preocupação do rei Povoador confirma-se quando isentou os primeiros trinta moradores de Barroso que tivessem “cavalo, escudo e lança” de certos tributos. O rei aliciava os povoadores concedendo-lhes regalias, porque estando em zona de fronteira competia-lhes defender a região, conforme se constata em documentação de reinados seguintes, nomeadamente nas inquirições referentes a São Lourenço de Cabril do Julgado de Barroso, (Inquirições de D. Afonso III, 1258, I.A.N./T.T), e na carta de D. Afonso III já citada que confirma o foral de Padronelos, outorgado por D. Sancho I.

O castelo de Piconha (Fig. 2) desenhado cerca de 1509 por Duarte D´ Armas foi provavelmente mandado reconstruir pelo rei Povoador sobre as ruínas de uma fortaleza leonesa, dando fé à investigação de um historiador espanhol. (9)

A sua reconstrução (ou construção) encontra justificação na outorga do foral concedido à referida fortaleza pelo monarca.

Fig. 3 – Castelo de Portelo desenho de Duarte D´Armas no século XVI (Livro das fortalezas de Duarte D`Armas)

Quanto ao castelo de Portelo (Fig. 3), desenhado igualmente por Duarte D`Armas, existem referências de uma primitiva fortaleza no início do século XII. D. Urraca de Leão fez uma “concessão de Portelo (castelo) à sua meia-irmã D. Teresa” mãe de D. Afonso Henriques.

Embora os documentos sejam omissos, não será descabido admitir ser também preocupação de D. Sancho I a reconstrução do castelo de Portelo sentinela defensiva da fronteira e de Padronelos que lhe ficava nas proximidades, assento do concelho legalizado pelo referido foral outorgado pelo monarca.

Em época mais longínqua, atendendo aos achados arqueológicos encontrados nas redondezas do penhasco que serviu de base ao castelo de Portelo, admite-se ter sido anteriormente uma fortificação romana.

Das fortalezas referidas que durante séculos defenderam a fronteira barrosã hoje já pouco resta. Permanecem na paisagem os imponentes penedos que lhes serviram de suporte, conforme se observa nas figuras 4 e 5, testemunhos das batalhas travadas outrora entre portugueses e castelhanos.

Fig. 4 – Piconha na actualidade (imagem reproduzida do livro “Montalegre e o descobridor da Costa da Califórnia”, 2009, de João Soares Tavares)
Fig. 5- Portelo na actualidade (Coto de Sendim) (imagem reproduzida do livro “Montalegre e o descobridor da Costa da Califórnia”, 2009, de João Soares Tavares)

Pela Chancelaria de D. Sancho I temos conhecimento de diferentes concessões do monarca. No actual distrito de Vila Real, outorgou vinte e um diplomas, número significativo quando comparado com outras regiões do reino. Aqui ficam registados os topónimos das terras: Castelo de S. Cristóvão (1189), Souto Maior (1196), Souto de Telões (1196), Ermelo, Bilhó, Sabrosa (1196), Abaças (1200), Guiães (1202), Santa Marta de Beduído (1202), Cedrema, Fontes (1202), Taboadelo (1202), Crastelo (1202), S. Cipriano (1205), Fonte de Muliere (1206), Aguiar de Pena e Anexas, Rualde, Andrães, Argimundães, Godim e Souto de Escarão (1207); e, quatro apenas no distrito de Bragança: Penas Roias (1187) Bragança (1187), Junqueira da Vilariça (1201), e Rebordães (1208). (Chancelaria de D. Sancho I, Cartas de Foral, I.A.N./T.T.).

Parece-me pertinente citar da  “Crónica Geral de Espanha de 1344” uma frase significativa que identifica D. Sancho I: “…Foy muy boo rey e pobrou muyta terra e foi chamado dõ Sancho, o lavrador, e esto porque lavrou muytos castellos e pobrou muytas villas e fez muyto bem”. (10)

NOTAS:

(1) “Regesta de Fernando II”, de Júlio González, Madrid, 1943

(2) “Regesta de Fernando II”, idem

(3) “Documentos de D. Sancho I (1174-1211)”, Edição de Rui de Azevedo, Avelino da Costa, Marcelino Pereira, Vol I, Coimbra, 1979

(4) S. Paio na actualidade pertence à Galiza. Pelas Inquirições Afonsinas em 1258, portanto no reinado de D. Afonso III era um lugar repartido por Portugal e Galiza: “et de Santo Pelagio de tota prole que exierit pró ad dominum debet inde habere Dominus Rex terciam partem.”

(5) Chancelaria de D Afonso III, Livro II, f.4, I.A.N./T.T.)

(6) Livro dos foraes novos da comarqua de Trallos Montes f. 42 e 42 v.º I.A.N./T.T.

(7) Chancelaria de D. Afonso III, Livro I, I.A.N./T.T.)

(8) As honras são pequenas unidades concelhias com uma particularidade muito peculiar. Constituídas geralmente por uma paróquia, ou pouco mais, possuíam um governo próprio à semelhança dos concelhos das cidades. As honras de Barroso é assunto para uma outra crónica.

(9) Manuel Gonzáles Simancas, in “Plazas de Guerra Y Castillos medievales de la frontera de Portugal”, Madrid, 1910, cita um códice da “Seccion de Manuscritos da Biblioteca Nacional de Madrid”, que tem escrito: “el castillo de Piconha fué construído por D. Alfonso III de Léon (866-910)

(10) “Crónica Geral de Espanha de 1344”, Ed. De Luís Lindley Cintra, Lisboa, 1951-1990.

(João Soares Tavares escreve segundo o anterior acordo ortográfico)

 

 

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