HÁ 480 ANOS O BARROSÃO CABRILHO DESCOBRIU A COSTA DA CALIFÓRNIA

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Dr. João Soares Tavares

       

HÁ 480 ANOS O BARROSÃO CABRILHO DESCOBRIU A COSTA DA CALIFÓRNIA

João Soares Tavares

A crónica de hoje pretende assinalar um feito notável: o descobrimento da costa da Califórnia em 28 de Setembro de 1542, portanto, há 480 anos, pelo navegador português João Rodrigues Cabrilho natural do concelho de Montalegre.

A frota com Cabrilho no comando constituída pelo galeão San Salvador, pela nau Vitória, e por um bergantim ou embarcação semelhante, crê-se o San Miguel, zarpou do porto de Navidad na costa mexicana do Pacífico em 27 de Junho de 1542. A 28 de Setembro desse ano aportou numa baía que designou San Miguel, a actual baía de San Diego. Iniciou nesse dia o descobrimento da costa da Califórnia. Depois foram mais de 3 meses a navegar no desconhecido Pacífico, que de pacífico só tinha o nome, até à latitude de 40º N. Em homenagem ao navegador, Portugal ofereceu uma estátua ao estado da Califórnia erguida em frente da baía de San Diego, inaugurada oficialmente em 1942 conforme documenta a figura 1.

Feito notável que outros tentaram antes sem conseguirem. Pelo respeito que merece esse notável navegador do século XVI, pouco reconhecido em Portugal por ter realizado o feito num barco com bandeira de Castela, venho recordá-lo e, também, corrigir um enorme erro histórico que envolve o seu descobrimento.

 

 

 

 

Fig. 1 – Fotografia histórica da inauguração da estátua em homenagem a João Rodrigues Cabrilho. (Arquivo pessoal)

Recebi um jornal que divulgava um vinho do Porto com a marca “Cabrilho”. Homenagem simbólica se o promotor da marca ficasse apenas por aqui. Ilustrava a notícia uma fotografia com a embalagem da garrafa e, bem patente, o respectivo rótulo: “Cabrilho discoverer of California” (Cabrilho descobridor da Califórnia).

Se me é permitida a metáfora, “entornaram o caldo”, porque Cabrilho não descobriu a Califórnia, descobriu a costa da Califórnia, que obviamente não retira mérito ao feito do nosso compatriota. Pelo contrário. São descobrimentos distintos. Trata-se de um erro histórico gravado em centenas de garrafas de vinho do Porto, talvez milhares, partilhado por um número incalculável de apreciadores desse néctar emblemático do nosso país. Assim, uma falsidade é propagandeada e aceite como facto histórico.

Fig. 2 – Embalagem da garrafa de vinho do Porto com o rótulo historicamente errado. (Arquivo pessoal)

Não pode haver dúvidas sobre o descobrimento da costa da Califórnia pelo navegador português. Está documentado na bem pormenorizada “Relación del descubrimiento que hizo Juan Rodriguez navegando por la contra costa del Mar del Sur al norte hecha por Juan Páez” (Fig. 3).

 

 

 

 

 

 

Fig. 3 – “Relación del descubrimiento que hizo Juan Rodriguez navegando por la contra costa del Mar del Sur al norte hecha por Juan Páez”. Achivo General de Indias, Sevilha

Analisemos os factos:

Transcrevo da citada “Relación del descubrimiento ” os excertos necessários para esclarecer dúvidas (a quem as tiver) sobre quem é quem, ou, por outras palavras, quem descobriu a Califórnia e a costa da Califórnia:

– Sexta Feira (27 de Agosto)…cinco índios foram aos barcos e informaram por sinais que já tinham visto homens semelhantes aos espanhóis com barbas e tinham cães, bestas e espadas (…) deles entenderam os navegantes por gestos que fizeram, haver espanhóis a cinco jornadas do local onde se encontravam (…) Depois do capitão (Cabrilho) entregar aos índios daquele local uma carta para os espanhóis que estavam no interior, partiram deste porto… (tradução do original espanhol)

– Andaram meia dúzia de léguas na Quinta Feira (28 de Setembro) à vista da costa de nornoroeste e avistaram um porto muito bom que está nos 34 graus e um terço a que chamaram San Miguel (San Diego na actualidade.) (…) No dia seguinte pela manhã vieram até aos barcos três índios grandes que disseram por sinais observarem pela terra dentro homens como nós, com barbas e vestidos e armados como estavam os dos barcos, com bestas e espadas, com o braço faziam sinais que atiravam neles e correndo indicavam que iam a cavalo e mataram muitos índios e eles tiveram muito medo. (…) (tradução do original espanhol)

– Sábado, 7 de Outubro (…) desembarcaram os espanhóis que foram bem recebidos a quem um índio velho por meio de sinais indicou que na terra firme (continente) andavam homens como eles vestidos e com barba. (tradução do original espanhol)

– Domingo 8 do citado mês, entraram numa baía que designaram dos Fumos que está nos 35 graus (…) relacionaram-se com alguns índios que estavam numa canoa que lhes indicaram por sinais que ao norte havia espanhóis iguais a eles.(tradução do original espanhol)

 

– Terça Feira (10 de Outubro)…ancoraram junto a um grande vale de onde partiram muitas canoas com doze ou treze índios em cada e dirigiram-se aos barcos dizendo haver cristãos no interior (…) informaram por gestos que em sete jornadas era possível alcançar os espanhóis que viram nessa região. João Rodrigues determinou enviar dois espanhóis ao interior, porém, optou por enviar por aqueles índios uma carta para os cristãos. Os habitantes desta terra que está em 35 graus e um terço… (tradução do original espanhol)

Infere-se do relato da viagem: em cinco locais diferentes, os navegantes foram informados pelos indígenas que viviam junto à costa da Califórnia, da presença de europeus semelhantes a eles (com o mesmo aspecto, forma de vestir e armamento), no interior do território. Portanto, estes chegaram em data anterior.

Quem eram os europeus que pisaram o solo da Califórnia antes de Cabrilho?

Para obter a resposta temos de recuar alguns anos.

As viagens realizadas para descobrimento da costa californiana, nomeadamente a mando de Hernan Cortés foram mal sucedidas até 1539. Somente nesse ano, em 8 de Julho, Francisco de Ulloa iniciou uma viagem com algum sucesso. Comandando uma frota de três barcos partiu de Acapulco navegou no golfo da Califórnia que baptizou mar de Cortés e, em 28 de Setembro de 1539 avistou no estremo norte do golfo a foz do rio Colorado que designou Ancón de San Andrés. Não tendo encontrado o mítico estreito de Anian que nessa época pensavam existir a ligar o Pacífico ao Atlântico, navegou para sul junto à costa oriental da península da Baixa Califórnia, contornou a ponta da península, mareou para norte tendo atingido a ilha de Cedros cerca do paralelo 28º N. Daí enviou uma carta a Hernan Cortés com informações sobre a viagem em um dos barcos que fez regressar ao México.

 

A linha azul da fig. 4 representa esquematicamente o trajecto de Ulloa no descobrimento da península da Baixa Califórnia. A linha vermelha identifica o percurso da viagem de Cabrilho efectuada três anos depois. Os elementos recolhidos por Ulloa já vislumbravam a Baixa Califórnia como península, todavia, os construtores de mapas continuaram a desenha-la erradamente como ilha.

Fig. 4 – Esquema dos percursos relativos às viagens de Francisco de Ulloa no descobrimento da península da Baixa Califórnia em 1539 (linha azul) e de Cabrilho em 1542 (linha vermelha), in Tavares, João Soares – “Montalegre e o descobridor da Costa da Califórnia”, C.M.M., 2009

No ano seguinte, em 9 de Maio de 1540, Hernando de Alarcón partiu de Acapulco com dois barcos a que juntou outro em Santiago de Buena Esperanza (actual Manzanillo) numa expedição ao golfo da Califórnia seguindo um percurso semelhante ao de Ulloa. Tinha por finalidade reabastecer a expedição de Francisco Vásquez de Coronado que em Fevereiro de 1540 partira por via terrestre da cidade mexicana de Compostela, com a pretensão de encontrar as míticas Sete Cidades do ouro de Cíbola localizadas algures para norte do México.

Alarcón chegou ao golfo da Califórnia, atingiu a foz do rio Colorado que designou “Buena Guia” e, com início em 26 de Agosto de 1540 explorou o rio numa distância considerável, tendo alcançado a fronteira entre os actuais estados do Arizona e da Califórnia acima da confluência do rio Gila com o rio Colorado. Segundo documentação fiável pisou terras da Califórnia.

Os expedicionários mantiveram um relacionamento com indígenas da Califórnia que conheceram durante a subida do Colorado. Alarcón compilou dados importantes nomeadamente sobre costumes, religião, práticas de guerra, alimentos e habitações dos nativos.

O piloto do barco de Alarcón, também cartógrafo, era Domingo del Castillo que um ano antes pilotara o barco de Francisco de Ulloa na viagem ao Golfo da Califórnia. Com as observações recolhidas nos dois percursos realizados, desenhou um mapa que é a primeira representação cartográfica correcta da parte até então conhecida da península da Baixa Califórnia e, do curso inferior do rio Colorado explorado durante a expedição de Alarcón, conforme se comprova nesse mapa reproduzido na figura 5.

 

Quero realçar outro mapa já com a representação da Costa da Califórnia desenhado por Andrés Homem em 1559, segundo as informações recolhidas durante a viagem de Cabrilho em 1542-43.

 

Fig. 5 – Mapa de Domingo del Castillo (1541) com a península da Baixa Califórnia e curso inferior do rio Colorado exploração verificada em 1540, in Tavares, João Soares – “João Rodrigues Cabrilho, Um Homem do Barroso?”, C.M.M., 1989

(Fig. 6). Os dois mapas são os primeiros a confirmarem que a Califórnia não era uma ilha e que a Baixa Califórnia era uma península.

 

 

 

 

 

Fig. 6 – Mapa da Costa da Califórnia de Andrés Homem, (1559) in Tavares, João Soares, “João Rodrigues Cabrilho Um Homem do Barroso? ”, C.M.M., 1998, reproduzido do original in Biblioteca Nacional de Paris

 

Quanto à expedição liderada por Francisco Vásquez de Coronado, da qual temos conhecimento pelo relato de Pedro Castañeda soldado-cronista participante na expedição, depois de percorrerem um vasto território do México, os expedicionários infletiram para o interior pelo Arizona, Novo México, Texas, Oklahoma e Kansas não conseguindo descobrir por inexistentes, as Sete Cidade do ouro, como também, não se avistaram com Alarcón. Este, aguardou em vão por notícias de Coronado, tendo regressado ao México antes do fim de Setembro. Todavia, preservou as provisões destinadas a Coronado a que juntou informações sobre a sua expedição num lugar assinalado, sendo recolhidas por Melchor Díaz encarregado de as procurar, quando em finais de Setembro de 1540 chegou ao local no comando de um grupo de expedicionários. Estes construíram jangadas, atravessaram o rio Colorado que Díaz designou  “Rio del Tizón”, e exploraram o território para oeste  certamente com cavalos pois o  grupo  incluía  cavaleiros.

Constata-se: o descobrimento da Califórnia verificou-se em Setembro de 1540 durante a expedição de Alarcón. Depois, em finais de Setembro desse ano ou no mês seguinte, o grupo comandado por Melchor Díaz fazendo fé na documentação existente, terá explorado a Califórnia. Recordo, quando a frota de Cabrilho ancorou no porto hoje designado San Diego, os navegadores foram informados pelos indígenas locais por meio de sinais, da presença no interior de europeus a cavalo. Quanto ao descobrimento da Costa da Califórnia verificou-se dois anos depois. Teve início em 28 de Setembro de 1542 e foi da responsabilidade de Cabrilho conforme se prova pelas fontes citadas.

No sul do estado da Califórnia, lado oposto a San Diego, na margem direita do rio Colorado a pouca distância da cidade de Winterhaven, um marco histórico.

Fig. 7 – Marco histórico erguido no sul do estado da Califórnia, que testemunha os primeiros europeus a localizar o território em 1540. (Arquivo pessoal)

 

assinala os primeiros europeus, da expedição de Alarcón, a pisar terras da Califórnia, certamente os referidos pelos indígenas da costa oeste, conforme nos relata o roteirista Juan Paéz na “Relación del descubrimiento”. Quero realçar: entre as expedições – de Alarcón e Díaz – realizadas em 1540 e a viagem de João Rodrigues Cabrilho em 1542, não se verificou qualquer viagem ou expedição à Califórnia.

Segue-se a tradução do texto gravado em inglês no marco histórico referenciado:

« Expedição Hernando de Alarcón – A missão de Alarcón era fornecer suprimentos para a expedição de Francisco Coronado em busca das lendárias sete Cidades de Cíbola. Os espanhóis liderados por Hernando de Alarcón subiram o rio Colorado de barco do Golfo da Califórnia, passando por este ponto, tornando-se os primeiros não índios a avistar a Alta Califórnia em 5 de Setembro de 1540».

Devo salientar: o descobrimento da costa da Califórnia por João Rodrigues Cabrilho, foi um feito notável de audácia e de conhecimento científico, que outros navegadores tentaram anos antes sem êxito. Depois dele, só 60 anos após, um navegador espanhol repetiu o percurso de Cabrilho seguindo os informes deixados pelo português. Cabrilho é grande pelo que fez, não carece de atributos creditados a outros.

Oxalá o vento leve esta minha nota até ao promotor da marca do vinho do Porto em questão, e, o sensibilize a corrigir o rótulo da garrafa repondo a verdade histórica, quando se completam 480 anos sobre o descobrimento da Costa da Califórnia por Cabrilho. O seu a seu dono.

BIBLIOGRAFIA:

Castañeda, Pedro de, – ed. e trad. de George Parquer Winhisp – “The Journey of Coronado 1540-1542”, 1896

Chisholm, Hugh – “Hernando de Alarcón”, Washington, 1911

Detling, Douglas G. – “California Discovered”, 2017

Elsasser, Albert – “Explorations of Hernando Alarcón in the Lower Coronado River Region”,1979

Hammond, George – ed. “Narratives of the Coronado Expedition, 1540-1542,  U.N.M., Albuquerque”, New México, 1940

Lavender, David – “De Soto, Coronado, Cabrilho, explorarers of the northern mystery”, 1910

Paéz, Juan – “Relación del descubrimiento que hizo Juan Rodriguez navegando por la contra costa del Mar del Sur al norte” in, “Colección de documentos inéditos relativos al descubrimiento, conquista y colonizacion de las posesiones españolas em America y Oceania”, Archivo General de Indias, Sevilha

Tavares, João Soares – “Os Passos de Cabrilho”

Tavares, João Soares – “João Rodrigues Cabrilho, Um Homem do Barroso?”, C.M.M., 1989

Tavares, João Soares – “Montalegre e o descobridor da Costa da Califórnia”, C.M.M., 2009

Wagner, Henry – “Spanish Voyages to the Northwest Coast of America in the Sixteenth Century”, San Francisco, U.S.A., 1929

(João Soares Tavares escreve segundo o anterior acordo ortográfico)

 

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