Em defesa da História
JOÃO RODRIGUES CABRILHO EM VILA VIÇOSA
João Soares Tavares
Já esquecida a polémica levantada meses atrás por espanhóis de Palma del Rio (Córdoba), – analisada anteriormente neste jornal – que pretenderam deslocar a naturalidade do navegador João Rodrigues Cabrilho descobridor da Costa da Califórnia para aquela localidade espanhola, quando as provas históricas sobre o seu nascimento apontam para Lapela, freguesia de Cabril do concelho de Montalegre, (1) o título desta crónica faz supor que outra terra reivindica a naturalidade de Cabrilho. À frente apresento a explicação.
Já conhecia Vila Viçosa. De passagem. Apenas. Desse tempo, longínquo, retenho as imagens do mármore a marcar presença na paisagem natural e patrimonial; da Praça da República – sala de visitas da vila; e do castelo sobranceiro à referida praça. O meu conhecimento sobre o património histórico da vila fora adquirido teoricamente. Necessitava de proceder à confirmação “in loco”. Impelido por esse desejo e aproveitando o tempo primaveril que se fazia sentir, decidi visitar a “vila branca” alentejana. Quatro dias serão suficientes – pensei.
Vila Viçosa é um concelho relativamente pequeno. Possui apenas quatro freguesias e pouco mais de 8.000 habitantes. Todavia, destaca-se pelo rico património histórico, cultural e natural. D. Afonso III outorgou-lhe foral em 1270. Na última década do século XIII D. Dinis mandou edificar um castelo cuja traça medieval se manteve até ao século XVI enquanto residência dos Duques de Bragança. Posteriormente foi reestruturado mormente na época das Guerras da Restauração. Sobressai no interior da fortaleza o “Solar da Padroeira de Portugal” – igreja de Nossa Senhora da Conceição – que substituiu a ermida de Santa Maria do Castelo mandada erguer por D. Nuno Álvares Pereira, primeiro donatário da vila. A imagem de Nossa Senhora da Conceição do altar da capela-mor, em pedra de ançã, terá sido mandada executar em Inglaterra pelo Condestável. De realçar numa vitrina de uma das paredes laterais o estandarte em seda com as armas nacionais que “preserva a memória da vitória na Batalha de Montes Claros”, na qual os portugueses levaram de vencida os espanhóis e se desenrolou ali bem perto embora já em terreno do vizinho concelho de Borba.
Ainda, no interior do recinto amuralhado, destaco o conjunto das casas aninhadas, que nos dão uma imagem de como seria a pequena vila antes de se espraiar para o exterior das muralhas.
O Paço Ducal mandado edificar pelo 4º duque de Bragança nos primórdios do século XVI apresenta uma fachada com 110 metros de comprimento totalmente revestida a mármore. É de visita obrigatória. Também o convento das Chagas de Cristo. Adaptado a pousada em 1997, foi considerado um dos conventos mais prósperos e opulentos do país por recolher as jovens da melhor nobreza do reino que ingressavam na vida monástica, ficando conhecido pelo mosteiro das freiras ricas. Tem a particularidade de ser o último convento a fechar as portas depois de extintas as ordens religiosas. A última freira faleceu em 1905. Na igreja adjacente classificada de monumento nacional destaque para a cobertura de azulejos polícromos do século XVII. Lamentavelmente encontra-se fechada ao público. Nem os utentes da pousada a que o convento deu lugar podem usufruir de uma visita. Coisas da Fundação da Casa de Bragança – disseram-me.
Outros monumentos a reter nesta “vila museu”: Convento e Igreja dos Agostinhos com fundação em 1267 no reinado de D. Afonso III; Igreja de São João Evangelista edificada na terceira década do século XVII para acolher o colégio jesuíta de São João Evangelista; Santuário da Nossa Senhora da Lapa templo barroco do século XVIII; Igreja e convento dos Capuchos outro templo barroco do século XVIII, dentre outras igrejas e capelas.
Vila Viçosa sabe enaltecer os filhos que se destacaram em diferentes áreas. No terreiro em frente do Paço Ducal a estátua equestre de D. João IV honra o rei Restaurador fundador da Dinastia de Bragança. Passando à Praça da República observámos a estátua dedicada a Florbela Espanca poetisa calipolense autora das obras: “Livro de Mágoas”, “Livro de Soror Saudade”, Charneca em Flor” e outros. Mais além o monumento evocativo de Bento de Jesus Caraça, cidadão empenhado, cientista e professor catedrático, esforçado lutador contra a ditadura salazarista que lhe originou a demissão da Universidade. Também se observa uma gravura recordando Henrique Pousão considerado o mais inovador pintor português da segunda metade do século XIX. Morreu precocemente com apenas 25 anos. Obras suas poderão ser apreciadas no Museu Nacional de Soares dos Reis no Porto.
De assinalar os muitos museus existentes nesta vila alentejana: Museu Agrícola e Etnográfico, Museu do Estanho, Casa Museu Bento de Jesus Caraça, Museu de Arte Sacra, Museu de Caça, Museu de Arqueologia e Museu do Mármore. Pelo valor cultural todos merecem uma visita. Para não usurpar excessivo espaço no jornal e, por razões pertinentes justificadas a seguir vou apenas referir-me ao Museu do Mármore. Inicialmente hesitei se deveria ou não lhe fazer uma visita. O saber não ocupa lugar, mas perante as informações de que dispunha, os outros museus da vila revelavam-se mais atractivos aos meus interesses. Aproveitando algum tempo livre lá fui. Ainda bem… A guia percorrendo as diferentes salas e bancadas conseguiu de uma forma simples e objectiva fornecer informação sobre as diferentes fases desde a actividade extractiva do mármore até à obtenção do produto final.
Quando entrei na última sala onde estavam expostas obras esculpidas por artistas locais estremeci perante o insólito. À minha frente, junto de uma parede, encontrava-se uma estátua exactamente igual nas dimensões e na cor à estátua em honra de João Rodrigues Cabrilho edificada em San Diego da Califórnia. Como veio aqui parar esta estátua desconhecida igual à estátua que vi e fotografei naquela cidade californiana e reproduzi na biografia que assinei sobre o descobridor da Costa da Califórnia? Raptaram a estátua – pensei. Não seria a primeira vez conforme já explanei em trabalhos editoriais anteriores.
Segundo a investigação realizada no século passado sobretudo em documentação do “Cabrillo National Monument” de San Diego e registei nomeadamente no meu livro “João Rodrigues Cabrilho um Homem do Barroso?”, a produção da estátua do navegador foi confiada ao escultor Charters de Almeida e resultou da oferta de uma senhora norte-americana (Mrs. Marion Reupsch). Concluída, a escultura deixou Portugal a bordo da corveta da Marinha “João Coutinho” em 28 de Janeiro de1988, aportou em San Diego em 26 de Fevereiro desse ano, e foi substituir uma estátua anterior já corroída pelos agentes atmosféricos, essa, oferta do governo português ao Estado da Califórnia em 1939 obra da responsabilidade do escultor Álvaro de Brée.
Perante a minha perplexidade a simpática guia serenou-me. Aquela “estátua” existente no Museu do Mármore de Vila Viçosa é o molde original proveniente dos U.S.A., fabricado com uma mistura de gesso e lã de vidro que serviu para elaborar com as mesmas medidas a estátua de San Diego.
A referida estátua foi esculpida a partir de um bloco de calcário com 17 toneladas tendo ficado com as dimensões de 4,27m X 1,20m X 0,92m, e foi obra do escultor César Mário Carvalho Valério já falecido, natural de Vila Viçosa que aos 13 anos iniciou a actividade como aprendiz de canteiro e rapidamente revelou a sua habilidade em trabalhar a pedra. Conforme informação do Museu, Charters de Almeida visitou a oficina de Carvalho Valério durante a feitura da estátua. Foi ele que supervisionou a obra, embora aproveitando uma frase do filho também escultor com o mesmo nome do pai: “são as mãos e o coração do artista que criam a escultura”.
Durante 30 anos aquela “estátua” ficou esquecida numa dependência da oficina de Carvalho Valério. O seu filho com quem tive oportunidade de falar dois dias depois da minha visita ao Museu informou-me que em 2017 teve a ideia, na minha perspectiva feliz, de a doar ao Museu do Mármore preservando-a de uma eventual destruição. Lá está há perto de 2 anos, embora passe despercebida a quem visita o museu com a preocupação de conhecer “as componentes científica/geológica e tecnológica da transformação do mármore”. Oxalá permaneça por muitos anos e que sirva para alertar os visitantes sobre o Homem notável natural de uma pequena aldeia barrosã simbolizado naquela “estátua”, cuja vida e obra é tão pouco conhecida dos portugueses.
Pessoalmente foi uma agradável surpresa este reencontro com João Rodrigues Cabrilho. Não resisti e pousei ao seu lado numa fotografia para memória futura.
Concluindo: Presentemente existem três estátuas em honra do navegador português: uma em San Diego (Califórnia), outra em Montalegre e esta no Museu do Mármore de Vila Viçosa.
Os quatro dias de Vila Viçosa chegaram ao fim. Já pertencem ao meu mundo das boas recordações nomeadamente o reencontro inesperado com João Rodrigues Cabrilho. Todavia, “não há bela sem senão”. De regresso à minha terra recordo a casa onde nasceu e viveu Florbela Espanca. Com vidros das portas e janelas partidos, ameaça ruína. Se não lhe acudirem perecerá em breve tempo. Enquanto o carro desliza pela campina alentejana numa estrada emoldurada por campos floridos de papoilas resplandecentes, evoco a poetisa caracterizada pelos temas do sofrimento, da solidão, do desencanto aliados a uma imensa ternura, a poetisa de “Charneca em Flor”:
“Ó minha terra na planície rasa,
Branca de sol e cal e de luar,
Minha terra que nunca viu o mar
Onde tenho o meu pão e a minha casa…”
(João Soares Tavares escreve de acordo com a anterior ortografia)
NOTAS:
- Os mais cépticos relativamente à nacionalidade portuguesa de João Rodrigues Cabrilho deverão ler as provas históricas apresentadas nomeadamente nos trabalhos jornalísticos: “João Rodrigues Cabrilho português ou espanhol?” em “Ecos de Barroso” de 05.11.2018; “Notícias de Barroso de 07.11.2018; “Diário do Minho” de 09.01.2019, da autoria do signatário desta crónica.