Em defesa da História
João Rodrigues Cabrilho: português ou espanhol?
João Soares Tavares
Em artigo publicado em 19/10/2018 no “Ecos de Barroso”, o Dr. Barroso da Fonte escreveu: “Recentemente terão mexido no sopé ou arredores do Monumento Nacional a Cabrilho em S. Diego, colocando uma placa onde se pretende reconhecer que João Rodrigues Cabrilho é de sangue espanhol.”
Vou contar a história completa. A placa citada não foi obra do acaso. Resultou de uma notícia publicada em 2015 nos principais jornais espanhóis e reproduzida em alguns órgãos de comunicação social portugueses. Referia: uma investigadora canadiana descobriu num barco que navegou da Guatemala para Espanha em 1532, um tripulante de nome Juan Rodriguez Cabrillo e, ao ser interrogado num processo, primeiro em Cuba e depois em Espanha, respondeu ser natural de Palma de Micergilio, hoje Palma del Rio (Córdoba).
Numa primeira análise, a dita viagem oferece-me dúvidas pela seguinte razão: um barco a navegar da Guatemala para Espanha em1532, teria de contornar o sul do continente americano (estreito de Magalhães) seguindo em direcção às Canárias, sem fazer escala em Cuba porque não fica na rota. Naquele tempo, as viagens procedentes dos territórios conquistados pelos espanhóis no Novo Mundo (Indias de Castilla) partiam geralmente do Golfo do México (Vera Cruz). Somente neste caso o barco faria escala em Cuba.
Obviamente, os espanhóis rejubilaram com a notícia e só descansaram quando passados 3 anos, em 28 de Setembro de 2018 pelo festival anual em honra de Cabrilho inscreveram numa placa junto da estátua de San Diego, (Fig. 1) a nacionalidade espanhola do navegador a que se associou um discurso empolado do alcalde de Palma del Rio. A direcção do Festival Cabrilho não terá apoiado a iniciativa, mas fez alguma tentativa para a contrariar? A luso-americana Patty Camacho presidente do Festival disse à Lusa em Setembro passado a propósito do evento de 2018: “a missão do Festival é reconstituir o desembarque e celebrar o que nos tornámos desde que ele chegou”. Infere-se destas palavras: para ela não importa a nacionalidade, o importante foi celebrar.
Nestes 3 anos como actuaram as entidades de Montalegre sobre o assunto? A autarquia de Montalegre inquiriu a congénere de Palma del Rio sobre a existência de um certificado de nascimento do navegador naquela localidade? Porventura apresentou alguns argumentos discordantes, ou pelo menos enviou para análise à direcção do Monumento Nacional de Cabrilho de San Diego exemplares dos meus livros existentes na Câmara, que apresentam as conclusões relativas à nacionalidade e naturalidade portuguesas de Cabrilho?
ARGUMENTOS EM DEFESA DA NACIONALIDADE PORTUGUESA DE JOÃO RODRIGUES CABRILHO:
1 – Antonio de Herrera, conceituado historiador do século XVI, “Coronista Mayor de las Yndias”, numa das mais célebres obras sobre a conquista da Hispano-América, (Fig. 2) escreveu explicitamente que o vice-rei do México: “mamdô percebir dos navios y nombró por Capitan dellos a Juan Rodriguez Cabrillo Portugues, persona muy plática en las cosas de la mar”. (1) É inverosímil ter-se equivocado.
2 – Saberão os promotores da placa que os portugueses e os estrangeiros em geral se não tivessem uma licença especial não poderiam embarcar para as “Indias de Castilla”. Havia regras rigorosas. Carlos V (1500-1558) viu-se obrigado a restringir o embarque promulgando uma lei: “… no passe ningun extranjero en la navegación de las Indias”. (2) Os estrangeiros ocultavam a nacionalidade, inventavam um nome e indicavam uma naturalidade espanhola falsa ou recorriam a outros subterfúgios como estabelecerem-se numa localidade espanhola durante algum tempo para serem considerados vizinhos enganando assim a Casa de Contratação de Sevilha. Verificou-se com João Rodrigues (Cabrilho) e com centenas de portugueses que não estão referenciados no “Catalogo de Pasajeros a Indias” ou noutro documento, mas os seus nomes aparecem depois documentados já no Novo Mundo, geralmente com nome espanhol ou espanholizado, prática corrente entre os cronistas coevos. Essa é a explicação para o nome do nosso compatriota aparecer sempre escrito em espanhol. Antes de colocarem a placa no monumento alguém questionou: a naturalidade, – Palma de Micergilio –, referida pelo tripulante do tal barco, Juan Rodriguez Cabrillo, será falsa? É despiciendo admitir que o nosso compatriota para conseguir embarcar indicou uma naturalidade falsa, assimilando-a pelas razões que justifiquei?
3 – Saberão os responsáveis pela fixação da placa que no exército de Hernán Cortés no México após Maio de 1520, combateram pelo menos 3 soldados com o nome Juan Rodriguez? Estão referenciados na 2ª “carta de Cortés” datada de 30 de Outubro de 1520 endereçada ao imperador Carlos V (3). Um, o nosso compatriota, para se distinguir dos homónimos acrescentou nesse ano “Cabrilho/Cabrillo” ao nome, impelido como é lógico pelo topónimo Cabril da paróquia onde nasceu. A defender a nossa tese cito o cronista Bernal Diaz del Castillo seu companheiro de armas no mesmo exército, quando pouco tempo depois já o referencia na sua crónica, por Juan Rodriguez Cabrillo combatente no exército de Cortés. (4)
4 – Um documento incontroverso que atesta a nacionalidade portuguesa do navegador é o “Testimonio del estado de despoblación en que se hallaba la provincia de Honduras…” datado de 1536, no qual assina: “Juan Rodriguez, português, ombre de caballo”. (5)
5 – Dentre outros documentos que poderia citar certificando a nacionalidade portuguesa do navegador, o mais cativante é a sua pedra tumular. Na hora da despedida os companheiros inscreveram na lápide JRs, abreviatura de João Rodrigues. (Ver fig. 3) Sendo espanhol não aplicariam a sigla JRz? O “C” de Cabrilho também está ausente, pois como era alcunha foi logicamente ignorada.
6 – Saberão que em Lapela de Cabril existe a “casa do galego” onde o navegador nasceu? Em defesa desta tese é o descobrimento por João Rodrigues Cabrilho de um porto mexicano dois anos antes da viagem à Costa da Califórnia. Conforme está documentado, ficou vulgarizado por “Puerto de Juan Gallego” (6) como referência óbvia ao seu descobridor, o nosso compatriota. Deduz-se ser também conhecido pela tripulação do seu barco – San Salvador –, por Juan Gallego que o relaciona com a casa onde nasceu.
Voltemos ao artigo citado no qual o Dr. Barroso da Fonte escreveu: “Quando esta placa chegar ao conhecimento do Dr. João Soares Tavares, estou certo que colocará a sua competência técnica e científica ao serviço da verdade”.
O que é que posso fazer mais que não tenha já feito? Sou apenas um investigador. Segui desde os anos 70 do século passado “os passos de Cabrilho” nos territórios palmilhados pelo navegador. O meu trabalho está à vista de todos divulgado em jornais, revistas e em 4 livros dispersos por livrarias e bibliotecas do País e do Mundo. No século passado participei no Festival Cabrilho em San Diego onde tive o privilégio de explanar a vida do navegador perante uma assembleia embevecida de portugueses e luso-americanos. Alguns, mais saudosos da Pátria distante que os esquece, não evitaram deixar cair uma lágrima ao ouvirem falar do português descobridor da terra aonde imigraram. Agora a história é diferente. Os montalegrenses é que terão de discernir o que pretendem: marginalizar Cabrilho, conforme salvo raras excepções fizeram até hoje, ou irem à luta unindo esforços, sem subterfúgios, ultrapassando diferenças partidárias, recorrendo a dados históricos consistentes em defesa do seu conterrâneo.
Escreveu também o Dr. Barroso da Fonte no referido artigo ter a Academia Portuguesa de História realizado uma investigação nos anos oitenta do século XX: “Dessa investigação resultou uma decisão científica na qual se afirma que João Rodrigues Cabrilho nasceu no lugar de Lapela, freguesia de Cabril, concelho de Montalegre”.
Atendendo ao peso institucional da Academia, deveriam começar por aí: fazer chegar essa decisão científica à autarquia de Montalegre para a endereçar oficialmente à Superintendente Andrea Compton que gere o Monumento Nacional de Cabrilho, a fim de suspender a fixação da placa, porque o assunto segundo averiguámos não está encerrado. Eileen Martínez, chefe de Interpretação e Educação do Serviço Nacional de Parques, a quem presto a minha homenagem pela imparcialidade demonstrada: “garantiu que as informações encontradas por Kramer (investigadora canadiana) terão que ser publicadas e revisadas pela comunidade de historiadores antes que o Monumento Nacional de Cabrilho mude a sua versão oficial sobre a origem do descobridor”. Acrescentou à Agência EFE: “não temos a certeza onde nasceu e suspeitamos que fosse na Península Ibérica, não podemos confirmar se foi em Portugal ou na Espanha”.
Agora compete aos montalegrenses decidirem o destino de Cabrilho.
NOTAS:
1– Herrera, Antonio de – “Historia General de los hechos de los Castellanos en las Islas y Tierra Firme del Mar Oceano”, Década sétima, Ed. de Madrid, 1601-1615, pág. 113
2 – Tavares, João Soares – “João Rodrigues Cabrilho Um Homem do Barroso?”, 1998, pág. 28
3 – Tavares, João Soares – “Histórias de Vidas”, Lisboa, 2015, pág.254, carta reproduzida de “The pleasant history of the conquest of the west India, now called New Spayne”, Londres, 1678
4 – Díaz del Castilo, Bernal – Historia Verdadera de la Conquista de Nueva España, México, Ed. de 1974
5 – Tavares, João Soares – “João Rodrigues Cabrilho Um Homem do Barroso?”, 1998, pág. 30
6 – Idem, pág. 137
(João Soares Tavares escreve de acordo com a anterior ortografia)