MAGALHÃES CINCO SÉCULOS DEPOIS
João Soares Tavares
Quando a primeira viagem de circum-navegação vai perfazer cinco séculos (1519-22), Portugal, finalmente, homenageia Fernão de Magalhães.

Embora já o recordasse em diferentes crónicas e lhe tenha dedicado um capítulo no meu mais recente livro, (1) decidi respigar algumas notas destinadas mormente aos meus leitores menos familiarizados com um herói tão esquecido por que hoje, 10 de Agosto, completam-se precisamente 502 anos após a viagem que o imortalizou.
Magalhães foi muitas vezes maltratado. Há até, quem o considere traidor e falhado ao escrever: …vai-se bater 100 contra um com os indígenas. Se foi assim, tratou-se de uma espécie de suicídio (…) um acto desesperado de um homem que não pode voltar à sua pátria porque é um traidor, não pode voltar a Espanha porque falhou e já não sabe o que fazer. É uma ignóbil mentira conforme irei provar.
Sobre a naturalidade de Magalhães não subsiste uma certeza inequívoca. Realmente, as sugestões dividem-se. Excluindo a hipótese remota menos valorizada de ser oriundo de Figueiró dos Vinhos, as opiniões voltaram-se mais para o Porto devido principalmente à investigação do historiador chileno José Toribio de Medina publicada em 1920, (2) opinião já defendida em 1864 por Barros Araña e em 1907 por Pereira e Sampaio.
Todavia, a naturalidade transmontana do navegador é reivindicada num livro de Alberto Caetano publicado em 1898, do qual se transcreve o seguinte excerto: Não está bem determinada a data do nascimento de Fernão de Magalhães; é, todavia, certo que elle nasceu na aldeia de Sabrosa, de Traz-os-Montes. (3) Outras teses se seguiram alternando a naturalidade no Porto com a naturalidade em Sabrosa. Defendendo a última está Francisco Alves (Abade de Baçal) em trabalhos investigativos de 1921 e 1928. (4) Ainda em 1921, D. José Manuel de Noronha e António Baião procuraram impugnar a tese da naturalidade em Sabrosa.
A tese de Sabrosa voltaria a ser refutada pelo Visconde de Lagoa, em 1933 e 1938, com base em frases proferidas pelo próprio Fernão de Magalhães que, admitem, defender a naturalidade portuense.
Mais recentemente, o jornal Expresso de 22 de Maio de 2009 apresentou uma reportagem sobre o livro então publicado: “A naturalidade de Fernão de Magalhães Revisitada”, no qual o autor, Amândio Barros, apresenta vários documentos deduzindo que a “solução transmontana” pareceu uma hipótese “muito débil”, argumentando a naturalidade de Fernão de Magalhães em Ponte da Barca. Já em 1980 o historiador Joaquim Veríssimo Serrão, sem deixar de aconselhar a leitura das obras do Visconde da Lagoa (hipótese do Porto), Queirós Veloso e António Baião (hipótese de Figueiró dos Vinhos), concluiu com menor dúvida: Magalhães nascera à volta de 1480, crê-se com razões de acerto em Ponte da Barca. (5)
Apresentei hipóteses possíveis de respeitáveis historiadores, para certificar quão difícil é descortinar a naturalidade de Magalhães.
Sobre a infância pouco se conhece. Pelos doze anos o jovem Fernão começou por ser pajem da Rainha D. Leonor e depois morador da Casa d’El-rei. Era um nobre. Documentos referem ter estudado religião, matemática, álgebra, geometria, astronomia, navegação, música, dança, equitação e até artes marciais. Foi educado nos “segredos” das viagens marítimas portuguesas. Ajudou a preparar frotas que navegavam para a Índia. Em 25 de Março de 1505 embarcou na armada de D. Francisco de Almeida para o Oriente. Participou na expedição a Sofala. Na Índia combateu na batalha naval de Diu. Notabilizou-se em Malaca tendo salvado por duas vezes de morrer afogado Francisco Serrão o descobridor das Molucas. Participou na expedição de D. Jaime de Bragança a Azamor.
Quando Magalhães regressou a Portugal com um defeito numa perna resultante de uma ferida contraída em combate, recebeu como paga do Rei D. Manuel uma mísera pensão, que não correspondia ao mérito do herói. Não obstante, aceitou uma nova missão em Marrocos, onde é ferido gravemente na mesma perna deixando-o coxo para o resto da vida. Quando se encontrava de vigilância a um depósito de gado, não evitou o roubo de algumas cabeças, tendo sido castigado. Regressou a Portugal para apresentar ao rei as provas da sua inocência. Pediu-lhe também um aumento do soldo que era muito inferior ao de outros homens com menos méritos que ele. O rei recusou. Então, Magalhães perguntou ao rei se tinha alguma missão para ele poder servir a sua Pátria. A resposta foi negativa. No final, terá questionado o rei se poderia apresentar os seus serviços a outra Coroa. D. Manuel responde-lhe afirmativamente com desdém. Segundo assevera Gaspar Correia, Magalhães lhe quis beijar a mão, que lhe El Rey nom quis dar. (6)
Fernão de Magalhães, um homem que hoje diríamos com um curriculum invejável e uma grande experiência de navegação a partir daí era um expatriado forçado.
O explorador e navegador experiente, com conhecimentos do Mundo para além da Europa parte para Espanha. Prevendo as dificuldades que iria encontrar, mas determinado nos seus objectivos chegou a Sevilha. A sua intenção era realizar uma viagem às Especiarias (Molucas) rumando a Ocidente esperançado no apoio de Espanha.
Não foi fácil conseguir a audiência do rei. Viu-se obrigado a fazer várias diligências preliminares. Primeiro relacionou-se com Diogo Barbosa um rico e influente expatriado português, Cavaleiro-Comandante da Ordem de Santiago, entre outras condecorações. Depois, casou com a sua filha. Na etapa seguinte, apoiando-se na família Barbosa teve de persuadir a poderosa Casa de la Contratación que organizava as expedições ao Novo Mundo. Estava controlada pelo bispo de Burgos, Juan Rodriguez da Fonseca, outrora capelão da Rainha Católica, um burocrata frio e manipulador que inspeccionava as expedições e tirava o maior proveito do respectivo comércio.
Magalhães possuía um argumento importante para tentar convencer os representantes da Casa de la Contratación: estava persuadido que as ilhas das Especiarias ficavam dentro do hemisfério espanhol estabelecido pelo Tratado de Tordesilhas. Vencidos muitos obstáculos, obteve o apoio de um membro da referida Casa, Juan de Aranda, em troca de 20% dos lucros. Finalmente, conseguiu uma audiência em Valladolid com os ministros flamengos que aconselhavam o jovem imperador Carlos V. Em 20 de Janeiro de 1518, Magalhães acompanhado dos irmãos, Francisco e Rui Faleiro, homens com grandes conhecimentos náuticos deixou Sevilha. (A presença de Francisco Faleiro na reunião não se comprova). Levava consigo “Cartas de recomendação” do seu amigo a quem salvara a vida em Malaca, o navegador português Francisco Serrão, conforme referi. Serrão, em 1511, assumiu o comando de um navio de uma frota de três despachados pelo Vice-Rei da Índia, tendo chegado isolado no ano seguinte a uma das ilhas das Especiarias. Numa carta para Magalhães escreveu: Encontrei aqui um Novo Mundo maior e mais rico do que o do Vasco da Gama. Magalhães exibiu também um seu escravo, que dizia, verdade ou não, ser nativo de uma das ilhas que pretendia alcançar. Seria o seu intérprete na missão. Referiu a sua credenciada experiência marítima ao serviço de Portugal, e exibiu um mapa (ou um globo) com a rota a seguir. Depois de fazer a apresentação aos ministros do rei, Magalhães foi recebido pelo bispo Juan Rodriguez da Fonseca. O historiador e humanista Bartolomé de las Casas que esteve presente nessa reunião exprimiu o seguinte testemunho: Fernão de Magalhães tinha um globo bem pintado no qual estava representado o mundo inteiro e nele indicou a rota que se propunha tomar. (7) Las Casas, embora céptico em relação à rota, ficou bem impressionado com Magalhães. Escreveu: Este Fernão de Magalhães deve ter sido um homem de coragem e valoroso nos seus pensamentos para empreender grandes coisas. (8)
Depois dessa reunião de Valladolid, o navegador forneceu ao Governo a “Lista de exigências” em caso do descobrimento se realizar. Para abreviar, Fernão de Magalhães foi finalmente recebido em audiência por Carlos V que em 14 de Maio de 1518 assinou o contrato com o navegador.
Novos obstáculos se depararam a Magalhães. D. Manuel ao ter conhecimento da viagem procurou junto de Carlos V evitar a sua realização. O rei de Castela não foi pelos ajustes. Então, D. Manuel procurou que o seu embaixador Álvaro Barbosa propusesse o regresso de Magalhães a Portugal aliciando-o com ofertas. Nada conseguindo pela via diplomática o rei utilizou um espião, Sebastião Álvares, o cônsul de Portugal em Sevilha, para boicotar os preparativos da frota. Magalhães tudo ultrapassou. O resto já é sobejamente conhecido: Em 10 de Agosto de 1519 uma esquadra de cinco navios com Fernão de Magalhães no comando zarpou de Sevilha descendo o Guadalquivir em direcção a Sanlúcar de Barrameda. Deste porto, em 20 de Setembro rumou ao Ocidente pela rota de Sudoeste. Tripulantes eram duzentos e sessenta e cinco. Nesse tempo os portugueses acorriam a Sevilha na esperança de embarcar para o Novo Mundo. Pelo menos quarenta e nove portugueses conseguiram lugar na tripulação. Alguns ocuparam lugares de chefia. Os navios Trinidad, Concepción, Santiago e Victoria foram pilotados respectivamente pelos portugueses Estêvão Gomes, João Lopes de Carvalho, João Rodrigues Serrano, e Vasco Gomes Galego. Apenas o San Antonio levava um piloto não português.

Fernão de Magalhães, o grande ideólogo e mentor da viagem que atingiu o Oriente rumando a Ocidente não chegou às Especiarias (Molucas). Morreu em combate a 27 de Abril de 1521 contra os nativos da ilha de Mactan uma das Filipinas. Depois, Portugal ignorou-o. Os louros espanhóis da viagem foram para o basco Sebastián Elcano quando regressou mais 17 sobreviventes em 6 de Setembro de 1522 no resistente Victoria ao porto de partida. Magalhães ficaria ignorado aos olhos do Mundo não fora o diário escrito por Antonio Pigafetta, um dos sobreviventes, publicado em França entre 1526 e 1536 que descreve os pormenores da viagem. A História imortalizou-o na passagem do sudoeste – estreito de Magalhães – a tão procurada ligação entre o Atlântico e o Pacífico.
NOTAS:
(1) Tavares, João Soares, Histórias de Vidas, Lisboa (págs. 297-381)
(2) Veja-se, o estudo histórico de José Toríbio Medina: El descubrimiento del Océano Pacifico: Hernando de Magallanes y sus companeros: documentos, Santiago do Chile, 1920
(3) Caetano, Alberto, O descobrimento das Filippinas pelo navegador português Fernão de Magalhães, Lisboa, 1898
(4) Alves, Francisco M. (Abade de Baçal), O grande navegador Fernão de Magalhães, [Colecção de cinco documentos (…) que encontrou em Vila Flor (…) e se lhe afiguram necessários na divulgação pela luz que projectam referente ao grande navegador], in, O Instituto, Junho de 1921; Fernão de Magalhães e a autenticidade dos testamentos de 1504 e 1580, in Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, Vol. VI, Porto, 1928.
(5) Serrão, Joaquim Veríssimo, História de Portugal, Vol. III, 2ª ed. revista, Lisboa, 1980
(6 ) Correia, Gaspar, Lendas da Índia, Tomo II, Lisboa, 1858-1866
(7) Las Casas, Bartolomé, Historia General de las Indias, México, 1875
(8) Las Casas, Bartolomé, op.cit.
(João Soares Tavares escreve de acordo com a anterior ortografia)