Médico quântico…

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Médico quântico…

Deambulei durante alguns instantes. Recordei velhos tempos. É tão fácil reproduzir o passado e brincar com as lembranças quando andamos pelas mesmas ruas ou entre velhas casas.

À frente de uma loja vi um placard de ardósia onde os transeuntes são convidados a realizar um exame quântico apenas por vinte euros! Sorri. A mania da medicina quântica está em crescendo. Conheço algumas histórias, qual delas a mais disparatada.

Há anos, numa tertúlia ao final de uma tarde quente, lá para as bandas da capital, eu e mais quatro colegas desfrutávamos cervejas bem geladas. Uns comiam caracóis, mas eu, mais prosaico, optei por tremoços. Fui logo alvo de troça. Não liguei. As conversas mudavam de assunto entre dois golos de cerveja ou depois de enfiarem aqueles bicharocos em bocarras gulosas! Um dos meus colegas, useiro e vezeiro na prática de beber o meu copo, fazendo de conta que era o seu, já tinha agarrado o meu. Uma forma de economizar e rentabilizar. Prática antiga a que costumava juntar a saída prematura para não pagar. Conhecendo-o de ginjeira, fazia todos os possíveis para ficar um pouco mais afastado, só que daquela vez não consegui. Subitamente, surgiu um amigo de alguns e conhecido dos restantes. Alto, magro, bem cuidado, com boas maneiras, a denotar tiques aristocráticos, a que não era alheio o pomposo e rebuscado nome, perguntou: – Os senhores doutores sabem alguma coisa sobre medicina quântica? Foi o suficiente para interromper o nosso convívio. Cada um de nós, à sua maneira, um com o copo na mão, outro com o palito enfiado no caracol, eu com um tremoço prestes a ser sacrificado, e quase todos, se não todos, com os olhos esbugalhados não sabíamos o que dizer perante tão inusitada pergunta que tinha na sua base um adepto fervoroso da nova “medicina”. Como nenhum de nós não dizia nada, repetiu a pergunta. Mais uma vez o silêncio imperou até que um dos meus “quarks”, não sei qual, mas que deve ser doido, só pode, não tanto como eu, me obrigou a responder-lhe: – Bom, essa da medicina quântica é uma das coisas mais estranhas que ultimamente inventaram. Do pouco que sei sobre física quântica só lhe posso dizer que a mesma faz-me lembrar aqui o meu velho colega. Ao apontar para ele, disse: – Nunca sei se está a beber pelo seu copo ou pelo meu! Em suma, está nos dois ao mesmo tempo. Já viu que podia ser um exemplo quântico, muito melhor do que o famoso gato de Schrödinger? O senhor olhou-me de tal maneira que fiquei com a sensação de ver um dos seus olhos cobertos com uma luneta de aro de ouro prestes a ser dobrada, e a debitar estupefação, enquanto o bigode estremecia de raiva. Disse boa-tarde e saiu. Após as respetivas interjeições, e curtos comentários, a conversa continuou no seu ritmo, os copos esvaziavam-se, o meu mais rapidamente, embora não desse conta de o beber, os caracóis saíam à força das casinhas e os meus tremoços tinham encontrado o ritmo perfeito. Foi então que o meu velho amigo comentou: – Essa do gato de Schrödinger foi muito boa! E riu à boa maneira de Marley, o cão cínico. – Pois foi, mas hoje vais pagar a despesa. – Eu? – Sim, tu. É um efeito da física quântica. Nem sei se chegou a pagar vinte euros…

Salvado Massano Cardoso (Médico)

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