MORTICÍNIO NO RIO ZAMBEZE
CASO QUE NÃO PODE CAIR NA MEMÓRIA DO ESQUECIMENTO
João Soares Tavares
O calendário não mente. Hoje assinala 22 de Julho de 2020. Vou retroceder mais de meio século, aguardando que a memória coopere nos pormenores que pretendo descrever.
As actividades naquela Primavera fria de Estremoz de 1969 decorriam com normalidade no quartel da vila, se aceitarmos como normal a vida num quartel.
O aspirante miliciano João Soares Tavares fora aí colocado após suportar a recruta em Mafra e a especialidade em Santarém.
A notícia aguardada mas não desejada pelos jovens da minha idade chegou.
Fora mobilizado para Moçambique. Iria render um alferes que terminara a sua comissão. Era a regra. Calhava a todos, ou quase. Em Maio de 1969, o então alferes Soares Tavares teve guia de marcha para o esquadrão de Cavalaria de Lourenço Marques. Até aqui nada de extraordinário.
Ainda mal conhecia os cantos da minha nova casa, em Junho daquele ano, o “chefe local da guerra” nomeou-me para orientar uma coluna militar de Lourenço Marques (actual Maputo) até Vila Cabral no norte de Moçambique.
Argumentar sobre a inexperiência de um alferes recém-chegado e o desconhecimento geográfico daquela província ultramarina como era então denominada, seria tempo perdido. Ouvi e obedeci.

No dia aprazado para a partida apresentei-me no local designado e observo à minha frente uma coluna com um número considerável de unimogs, geeps e mais de cem soldados que iriam refazer batalhões no norte cada dia mais desfalcados com as baixas verificadas na guerra, censuradas na metrópole por quem decidia. Para remate, nas vésperas da partida uma notícia estourou em Lourenço Marques qual disparo de bazuca: em 21 de Junho de 1969, portanto tinham passado poucos dias, um batelão carregado de militares e viaturas afundara-se durante a travessia do Rio Zambeze.

As causas ainda eram desconhecidas: terrorismo, sabotagem, desastre acidental? Certeza: a morte de mais de cem militares e diversas viaturas dispersas no leito do rio. O alferes miliciano comandante da coluna também falecido tinha casado recentemente com uma colega do meu curso da Universidade de Coimbra. Quem iria iniciar trajecto idêntico, o primeiro após o naufrágio, com travessia obrigatória no mesmo local do rio Zambeze pois não existiam pontes nem locais alternativos, recebeu o pior incentivo.

Somente horas antes da partida fui informado pelas chefias militares das causas do sinistro: excesso de carga no batelão durante a travessia e provável avaria no motor do mesmo.
Com o geep carregado de rações de combate lá fui precavido mas receoso, confesso. Sobre os cerca de 30 dias do percurso até Vila Cabral por uma infinidade de quilómetros de picadas esburacadas, viaturas atascadas, avarias
imprevisíveis, sujeitos ao rebentamento de uma mina ou a uma emboscada quando a coluna transpunha lugares mais problemáticos, mal alimentados, dormidas aonde a noite nos encontrava, são imagens perceptíveis por quem viveu aquela guerra inglória e conseguiu fintar a morte, mas inimagináveis por quem não participou nela.

Surgia o maior obstáculo: a travessia do Zambeze no batelão, se não o mesmo, outro semelhante. Cautelosos, avisados sobre as causas da catástrofe, realizámos as travessias necessárias com viaturas e soldados em número limitado. O sol declinava nesse dia 22 de Julho de 1969, portanto hoje em que escrevo esta crónica passaram 51 anos, quando já na outra margem do Zambeze respirei 3 vezes de alívio ao constatar que militares e viaturas tinham chegado a bom porto. Um alferes aquartelado com o seu pelotão em Mopeia pequena localidade da margem do rio, cujo nome não recordo, descreveu-me em pormenor o fatídico desastre verificado dias antes.
Coluna alinhada partiu para as etapas seguintes. No cemitério recém construído bordejado pelo Zambeze uma centena de jovens entre alentejanos, beirões, minhotos, transmontanos… não regressariam aos braços das suas mães. Aquela imagem acompanhou-me durante o resto do percurso. Algures, no seio da selva africana, a minha memória reavivou um poema que declamei ainda adolescente em récita escolar: O Menino da sua mãe. Aqui fica registado como nota plangente daquele momento.
O Menino da Sua Mãe
No plano abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
— Duas, de lado a lado —,
Jaz morto e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
«O menino da sua mãe».
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
«Que volte cedo, e bem!»
(Malhas que o império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.
Fernando Pessoa, in “Antologia Poética”
Para que a memória não se esfume, escrevi esta crónica e reproduzo algumas das fotografias que repousavam silenciosas no meu arquivo pessoal, obtidas há
precisamente 51 anos nas margens do rio Zambeze e durante a sua travessia, poucos dias depois do fatídico desastre. Detalhes que restam de uma guerra inútil.
João Soares Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia