A MÍTICA PONTE DA MISARELA

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A MÍTICA PONTE DA MISARELA

Por João Soares Tavares

Dr. João Soares Tavares

Introdução

Hoje venho falar de uma ponte, não de uma ponte qualquer, venho falar da célebre ponte da Misarela localizada no rio Rabagão a ligar o concelho de Vieira do Minho ao de Montalegre. Para tal, vou recuar aos anos setenta do século passado quando iniciei as minhas peregrinações periódicas sobre investigação ambiental na região raiana correspondente às serras da Peneda, Soajo, Amarela, Gerês e Larouco.

Excluindo pequenos núcleos localizados é uma região uniforme relativamente à geografia e à geologia. Em muitos aspectos, as características físicas das suas gentes também se assemelham.

Por brenhas e sendas palmilhei montes e vales. Visitei aldeias empoleiradas em outeiros e aldeias aninhadas nas encostas aguardando a dádiva do sol suão. De pessoas, algumas analfabetas ou quase, apreendi uma cultura riquíssima herdada dos pais e dos avós, uma cultura não ensinada nas Universidades. No Inverno contaram-me histórias à volta da lareira. No Verão, os lugares de cavaqueio mudavam-se para o balcão da casa ou para as escadas de pedra. Repartiram comigo os alimentos de que dispunham, regados, quando havia, com vinho morangueiro conservado no pipo de carvalho. O clima é áspero, mas, em zonas baixas mais abrigadas algumas videiras conseguem resistir.

O ar montanhês das terras do noroeste acariciou-me o corpo e o espírito. Os  momentos aí vividos foram momentos enriquecedores. Passaram anos, mas, ficou algo bom que conforta e perdura.

A ponte da Misarela

O isolamento de um povo a viver durante séculos entre corgas e penhascos, por caminhos de acesso difícil, originou crenças e lendas perpetuadas de geração em geração.

Fig. 1- O  isolamento do montanhês entre corgas e penhascos (Foto JST)

 (Fig. 1) Misturam a religião cristã com práticas pagãs e não se consideram por isso menos cristãos.

Disseram-me durante uma cavaqueira: “Não deixe de visitar a ponte da Misarela”.

Assim fiz. Num dia longínquo, já lá vai mais de meio século, pisei pela primeira vez o lajedo dessa ponte medieval de um arco só, elevando-se do rio Rabagão cerca de 15 metros. Foi atravessada pelo exército francês do Marechal Soult em Maio de 1809, quando em fuga para Espanha foi fustigado por uma milícia popular entrincheirada nas margens do rio. Embora historicamente interessante, não foi esse episódio que me descreveram:

– “A Ponte da Misarela está associada a muitas lendas; tem poderes divinos e provoca a fertilidade das mulheres que não conseguem ter filhos” – dizem-me. “É um santuário milagroso onde se pratica o baptismo de crianças que vivem ainda no ventre materno para nascerem saudáveis” – afirmam outros. Alguém, mais matreiro, segreda-me ao ouvido: “A Ponte da Misarela esconde muita infidelidade conjugal…” Lembrei-me, então, do livro de Ferreira de Castro, “Terra Fria”, no qual o autor numa prosa de fino recorte, descreve um baptismo na ponte da Misarela, mas, esse pertence a outra história.

A versão dos que acreditam na Ponte da Misarela como santuário da fertilidade é a mais sedutora:

“Sentidos os primeiros sinais da maternidade, numa noite escolhida, a mulher e o marido, às vezes acompanhados por outros familiares, dirigem-se à Ponte da Misarela onde pernoitam. A primeira pessoa que por ali passar na madrugada seguinte é convidada a apadrinhar a futura criança. Ninguém se nega. Duma corda cumprida suspende-se um púcaro de barro que recolherá a água do Rio Rabagão. A futura mãe recebe no ventre a água, enquanto o padrinho recita a oração ritual: eu te baptismo criatura de Deus, pelo poder de Deus e da Virgem Maria, se fores rapaz serás Gervaz, se fores rapariga serás Senhorinha”. A fecundação fica assegurada. Passados meses emerge o rebento para gáudio dos pais. Conheci alguns Gervásios e Senhorinhas na região que receberam na ponte da Misarela o baptismo pré-natal. Depois segue-se o baptismo cristão na igreja da terra, agora com a presença do padrinho oficial.

Na altura escrevi um artigo jornalístico a fim de revelar aos habitantes de outras terras a singularidade desse caprichoso e antiquíssimo costume praticado naquele inóspito lugar. Reconheci que era insuficiente. Prometi voltar.

Não perdi o contacto com a ponte que me fascinou desde o primeiro momento. Nos anos seguintes continuei a visitar as montanhas do noroeste, umas vezes em trabalho e outras em passeio. Após Braga sigo geralmente pela estrada 103 até ao cruzamento para as Termas do Gerês e entro no Parque Nacional da Peneda-Gerês. Depois da barragem da Caniçada, utilizo um percurso admirável por uma estrada de montanha atravessando aldeias ainda bem conservadas, onde sobrevivem algumas regras de comunitarismo agro-pastoril, e confio à viatura a condução até à Ponte da Misarela. Não resisto ao chamamento da mítica ponte sempre diferente, com cambiantes diversos consoante a estação do ano e a hora do dia.

Desapareceu o espírito de aventura de outrora, quando aquela estrada de montanha foi caminho florestal apenas transitável por viaturas adequadas, ou por algum aventureiro que arriscava uma avaria no automóvel pelo prazer que lhe propiciava a descoberta da Natureza.

Somente no início dos anos noventa do século passado tive oportunidade de realizar uma série documental cinematográfica de 6 episódios sobre a região para a RTP. Foram cerca de três anos de viagens periódicas para o noroeste montanhoso durante as quatro estações do ano, com o objectivo de realizar um registo tão completo quanto possível sobre diferentes valores culturais, alguns únicos no país. Fui encontrar pessoas já conhecidas de anos anteriores e outras que se deram a conhecer, pessoas de lugares recônditos, sábios da experiência diária, sempre prestáveis a transmitirem os seus saberes. Obviamente, dediquei um documentário à história e às lendas da ponte da Misarela. Esse documentário, intitulado CRENÇAS E LENDAS, motivou o fascínio de telespectadores desconhecedores da mítica ponte, quando no ido ano de1993 foi apresentado pela primeira vez no canal 1 da RTP, conforme noticiaram jornais de então.

Fig. 2 – Fotograma do documentário cinematográfico CRENÇAS E LENDAS (1993) referenciado no texto

 

Do jornal Público de 22 de Setembro de 1993 respigamos: “…a série documental que João Soares Tavares dirigiu para o Canal Um da RTP aventura-se hoje pela memória que a terra guarda em si mesma. (…) Anda-se milénios para trás, milénios da vida das populações, cujos actos se reconhecem através dos testemunhos que a série descobre. É isso, afinal, que Soares Tavares desvenda: uma região onde as populações viveram sempre em comunidade e que agora se desagrega, por acção do mundo exterior. Um outro mundo que se acaba. (…)”. Para não ser exaustivo nada mais se transcreve. Fica o essencial para conhecimento do assunto.

Todavia, o documentário e os jornais não revelaram é apenas do conhecimento de um grupo restrito de pessoas: na ponte da Misarela fui alvo de feitiçaria ou de poderes sobrenaturais de consequências nefastas.

Retrocedemos aos anos noventa

As filmagens destinadas ao documentário CRENÇAS E LENDAS tiveram início num dia de Verão dos primórdios da década de noventa.

Deixámos a viatura na aldeia de Sidrós porque a partir daí somente era possível alcançar a ponte por um caminho pedonal. Durante o percurso encontrámos uma velhinha sentada à sombra de uma árvore. Uma Senhorinha que recebera o “baptismo pré-natal” no “santuário milagroso”. Estranhando a nossa bagagem perguntou-me ao que íamos. Informada, desejou-nos sorte no trabalho e, recomendou-me: “não tomem banho no rio debaixo da Ponte da Misarela porque dá azar”. Perante a minha admiração concluiu: “a ponte é obra do diabo, já foi benzida por um padre que a viu erguer e afugentou o mafarrico com uma reza, a ponte não caiu mas ele ainda anda por lá!”

Eu conhecia a lenda da edificação da ponte atribuída ao diabo, mas, não acreditei no suposto azar resultante do banho. Deixámos a Senhorinha a descansar e continuámos o nosso percurso.

Estava um dia de canícula. O suor escorria-me pelo rosto. Apenas o respirar ofegante e os passos dos caminhantes quebravam o silêncio do momento. O cantarolar resultante de quedas de água começou a chegar aos meus ouvidos. Galgados alguns metros, à minha frente surge o Rabagão. Pouco depois, a lendária ponte secular, testemunha de factos e de lendas, erguia-se imponente no fundo de uma corga.

Fig. 3 – A ponte da Misarela no rio Rabagão (Foto JST)

(Fig. 3 ) Vegetação verdejante com pinceladas amarelas e castanhas embelezava as margens. A jusante da ponte, uma piscina natural de água cristalina desafiava os corpos dos caminhantes afrontados pela soalheira. Quem poderia resistir? Eu e os meus colaboradores arrumámos rapidamente o equipamento de filmagens e mergulhámos naquela água convidativa. Foi um banho revigorante no Rabagão que jamais esquecerei por razões inexplicáveis. As filmagens ficaram para depois.

Embora na RTP já fosse utilizado o Vídeo na obtenção de imagens eu preferia a película de cinema. Mantinha-me fiel a este suporte pois considero a qualidade cromática da imagem de cinema superior. Porém, também tem inconvenientes…

Regressado a Lisboa, os rolos de película filmada foram entregues no laboratório da RTP para revelação conforme era feito habitualmente.

Quando passado algum tempo fui conhecer o resultado tive uma notícia inesperada. Houvera uma falha técnica no equipamento durante a revelação da película. Conclusão: As imagens ficaram totalmente danificadas! Que fazer? Película nova. Marcada a viagem e a estadia regressámos à ponte da Misarela.

O Inverno já se fazia anunciar quando revisitei a ponte para as segundas filmagens sobre o mesmo tema. A chuva que entretanto caíra engrossou o caudal do Rabagão oferecendo ao ambiente ainda maior imponência. (Fig. 4)

Fig. 4 – A ponte da Misarela num dia invernal (Foto JST)

Realizadas as filmagens regressei a Lisboa e entreguei a película na RTP para procederem à revelação. Desta vez não irá acontecer qualquer percalço – pensei. Puro engano! Com efeito, não houve falha técnica no laboratório, porém, a película utilizada nas filmagens fornecida pelo encarregado responsável da RTP já tinha ultrapassado o tempo de validade. Por lapso esqueceu-se de confirmar a data e o resultado estava à vista. As imagens apresentavam-se esbatidas. Mais uns metros de película danificados, tempo perdido, gastos imprevistos…Nesse momento, recordei as palavras da Senhorinha que encontrei no percurso pedonal para a velha ponte: “ Não tomem banho no rio debaixo da Ponte da Misarela porque dá azar…”

Fig. 5 Tabuleiro da ponte da Misarela foto MAM

Nova viagem até ao Norte. Pela terceira vez iria deslocar-me de Lisboa à ponte da Misarela com os meus colaboradores, a fim de obter imagens da mítica ponte destinadas ao desejado documentário cinematográfico. Não dei ouvidos às palavras sábias da Senhorinha proferidas meses antes, agora sofria as consequências. Desta vez, antes de iniciarmos as filmagens, permaneci durante algum tempo voltado para jusante em cima do “santuário” do Rabagão. Desejei a passagem de um padre capaz de aspergir o monumento com água benta e, como na lenda da edificação da Ponte da Misarela afugentasse o “mafarrico”, que estaria por ali escondido debaixo de algum salgueiro. Não passou… Então, sobre o lajedo da ponte invoquei o deus Larouco, que dá nome a uma serra raiana próxima, e penitenciei-me por não dar ouvidos ao conselho da Senhorinha numa tarde quente de Verão.

Finalmente deu-se o “milagre”. Na terceira filmagem na ponte da Misarela as imagens resultaram perfeitas. Fecundaram. Foram o embrião do documentário que intitulei “CRENÇAS E LENDAS”.

Durante a minha actividade de documentarista realizei três dezenas e meia de documentários, uma boa parte no norte montanhoso. Foram milhares de metros de película filmada. Aconteceram-me algumas contrariedades. Todavia, nenhuma se assemelhou às vicissitudes sofridas na Ponte da Misarela.

Após os acontecimentos narrados, permaneci alguns anos sem regressar à Ponte da Misarela. Quando a revisitei num dia que já não consigo precisar, mantinha o seu aspecto imponente. Debrucei-me no parapeito das guardas como já fizera tantas vezes. Uma brisa reconfortante acariciou-me a face e espraiou-se nas ramagens das plantas em redor. Sentada numa rocha da margem do rio observei uma jovem de rara beleza com longos cabelos loiros e olhos da cor esmeralda da água. Vestia uma túnica branca semitransparente. Parecia hesitar entre mergulhar, ou manter apenas os pés submersos. Ao aperceber-se da minha presença, com um gesto delicado incentivou-me a tomar banho no rio.

O primeiro impulso foi ir ao seu encontro, todavia, uma força contrária impediu-me, a memória recordou-me o banho anos atrás naquele local, que segundo a informação sábia de uma Senhorinha deveria ter evitado.

Fiquei imóvel receoso que aquele momento se volatilizasse. Imóvel continuava a jovem.

Perdi a noção do tempo em que permaneci naquela contemplação . Depois, retirei-me suavemente para não perturbar a jovem. Antes, porém, obtive uma fotografia a fim de recordar mais tarde aquele encantamento. Ainda pensei publicá-la aqui para ilustrar a narração com a legenda: A feiticeira da Misarela. Pensei melhor… Reservo-a para mim. Quem iria acreditar? Talvez apenas as crianças… Mas, elas não irão ler esta crónica.

Nota a destacar

A razão de recordar hoje a ponte da Misarela deve-se a um livro editado recentemente (lançamento em Agosto de 2025) intitulado “História e lendas da ponte da Misarela”, do autor Manuel Afonso Machado, barrosão por nascimento, radicado em Braga. O conhecimento do livro estimulou-me a retroceder até ao século passado e a escrever esta crónica.

Afonso Machado, depois de se reformar do ensino universitário não ficou parado, vem labutando na pesquisa dos valores genuínos da região geresiana que o viu nascer, já espelhada em três livros, um dos quais a monografia sobre Covelo do Gerês, aldeia cheia de história com uma igreja de enorme valor cuja origem se perde no tempo. Quanto à presente obra, trata-se de uma investigação sobre Gervásios e Senhorinhas vivos, que receberam o “baptismo” ainda no ventre materno na ponte da Misarela, mais as lendas plasmadas na ponte centenária, que o vento iria varrer para longe, não fora este cuidadoso trabalho de recolha.

(João Soares Tavares escreve segundo o anterior acordo ortográfico)

FONTE: Suplemento “CULTURA” do Diário do Minho