
O XAROPE QUE FAZIA CRESCER
Uma história em tempo de Natal
João Soares Tavares
Durante a minha infância os dias na aldeia não sofriam alterações significativas. Ao raiar, com chuva ou com sol, e não raramente com neve, palmilhava os mais de quinhentos metros de ruas entre a minha casa e a escola no extremo da aldeia que decalcava quatro vezes diariamente. Quando o Inverno apertava, a geada resplandecia nas pedras graníticas da calçada qual manto de noiva a caminho da igreja na manhã do casamento. Para lá da escola não havia casas, apenas a estrada de terra, ora poeirenta ora esburacada moldada pela chuva invernal. Era a ligação ao outeiro da ermida, local da romaria anual, e, às aldeias vizinhas.

Anterior à minha primeira bola de borracha, meu deleite e da pequenada lá da rua, serviu uma bola de trapos que, embora tivesse o mesmo desenho das bolas de cautchu dos jogadores do clube da cidade que ficava próxima da aldeia, não teve vida longa, tantos foram os chutos que apanhou durante os renhidos jogos entre as equipas formadas de seis contra seis, com mudança de campo aos cinco golos e final quando uma das equipas marcava dez golos. Depois da família, retenho da bola de trapos fabricada com esmero pela minha avó, a imagem mais longínqua desse tempo da meninice.
Outra imagem marcante das minhas memórias é do Miguel, o contrabandista, imigrante periódico na minha aldeia. Não consigo precisar a sua idade quando o conheci. Talvez, 40 anos. Alto, esguio, de rosto moreno tisnado pelo sol e pelo vento. Semblante afável. Minguado de carnes, mas musculado. Trajava habitualmente calças de bombazina e uma inseparável gorra preta. As alpercatas com a base de corda usava-as em tempo seco. Facultavam-lhe as caminhadas por brenhas e sendas. Todavia, a principal finalidade, pensava eu, seria para lhe facilitarem uma fuga rápida quando perseguido pelos guardas republicanos. Segundo as conversas que chegavam aos meus ouvidos tinha boa aceitação na terra.
Não conheci outro contrabandista na minha aldeia. Vinha periodicamente de uma terra raiana do outro lado da serra. Deslocava-se sempre a pé. Dormia aonde a noite o encontrava. Tinha reserva assegurada nos palheiros e nas cabanas em redor que lhe atenuavam o frio gélido dos invernos serranos. (Fig. 1) No Verão, quantas vezes a copa de uma árvore foi tecto do seu quarto de dormir.

Surpreendia-me a vida livre desse homem. Os quilómetros que galgava e as privações por que passava para conseguir sobreviver. No entanto, nunca vi algum sinal de amargura espelhado na sua face.
Transportava os produtos numa saca de serapilheira adquiridos no lado de lá da fronteira. A porta da casa de meus pais era paragem obrigatória, esperançado em vender alfinetes, agulhas, e, não sei que mais. Porém, o produto com venda assegurada para minha inquietação, era o xarope que fazia crescer, um fármaco de sabor desagradável que não estava à venda em Portugal. Creio tratar-se de um composto vitamínico. Mal não fazia, pois o médico da aldeia recomendava-o. Recomendava-o… porque certamente nunca o provou. Pela parte que me toca, era um tormento diário nos dias seguintes à chegada do contrabandista. Apesar dessa contrariedade e das voltas que o meu estômago ensaiava cada vez que ingeria uma colher desse xarope, manifestava simpatia pelo Miguel. Ele retribuía narrando-me aventuras da sua vida atribulada.
– Se não tomares o xarope ficas pequenino como o pai do Luís Benfica – dizia-me a minha mãe.
O pai desse meu colega da Escola Primária era o habitante mais baixo da aldeia.
– E se tomar, fico alto como o contrabandista? – Perguntava.
A minha mãe abanava afirmativamente a cabeça e eu não tinha alternativa.
Num certo dia, perguntei ao Miguel se em criança tomou muito xarope igual ao que vendia. Respondeu-me com uma sonora gargalhada. Não fiquei muito convencido com a resposta. Como nada mais acrescentou, considerei-a afirmativa.
Chegado à porta de casa, poisava o saco de serapilheira e detinha-se o tempo necessário para comercializar o produto. De seguida partia ao encontro do próximo cliente. Algumas vezes, enquanto conversava, olhava apreensivo para todos os lados. Parecia recear a vinda de alguém. Quando estava mais calmo, descrevia-me episódios deliciosos da sua vida que ainda hoje recordo.
Uma vez – contou-me – após terminar a Guerra Civil Espanhola, um espanhol perseguido pela Guarda Civil por discordar da ditadura imposta pelo General Franco veio acolher-se na sua aldeia raiana. Os aldeões tinham receio de lhe prestarem ajuda porque sendo descobertos eram aprisionados pelos guardas-republicanos. O Miguel não se atemorizou, indicou-lhe para esconderijo uma cabana fora da aldeia. Durante a noite levava-lhe o que conseguia angariar para lhe mitigar a fome. Passado algum tempo, os guardas começaram a rondar a aldeia. Vinham em perseguição do espanhol. Se lhe deitassem a mão seria enviado para Espanha com prisão certificada. Quando os avistou, pediu a um conterrâneo para ir avisar o perseguido enquanto ele persuadiu os guardas informando-os que enxergara um estranho numa moita na extremidade oposta da aldeia. Os guardas correram de imediato para lá, mas, depressa se aperceberam do logro. O contrabandista também teve de fugir para não ser preso. Esta e outras histórias permitiram-me determinar o seu carácter, e admiti-lo no lote dos meus heróis das “histórias em quadradinhos” (1).
Permanecia na minha aldeia dois ou três dias. Depois partia para outra jornada.
Durante algumas semanas mantinha-se afastado. Quando o período era maior e o meu estômago folgava de alegria, interrogava-me se não voltaria mais. Porém, regressou sempre. Ao vê-lo aparecer no extremo da rua, curvado, com o saco de serapilheira às costas, sabia que algo iria mudar nos dias seguintes: a minha dieta alimentar seria acrescida com uma colher do tal xarope que fazia crescer.
Os longos dias das férias de Verão decorriam remansosos, interrompidos apenas com alguma deslocação à cidade aonde gastava a minha parca mesada nas revistas de “histórias em quadradinhos”; com a romaria anual; quando o cinema ambulante – o meu “Cinema Paraíso” – arribava à aldeia; ou, no dia da feira de S. Miguel aonde os aldeões acorriam palmilhando os cerca de 8 quilómetros a fim de comprarem agasalhos para o Inverno já na espreita, e se deliciavam com a merenda habitualmente de sardinhas assadas, acompanhadas de broa de milho comprada nas tendas da feira, bem regadas com o tintol da região. Regressavam ao povoado apenas à noitinha alegremente trôpegos, iludindo-se assim, da espinhosa labuta diária.
Na madrugada de uma sesta-feira ouvi os cães uivar imitando os lobos. Dizia-me a minha avó: – É um sinal de mau presságio! Confirmou-se.
Na tarde desse dia brincava com um carrinho de latinha (2) no terreiro quando ouvi de um transeunte uma frase inimaginável: o regedor prendeu o contrabandista.
Meti o carrinho no bolso dos calções e corri para junto da casa do regedor localizada ao fundo da minha rua. A notícia propagou-se rapidamente qual rastilho de pólvora. Um grupo de curiosos comentava a ocorrência. O que eu não queria admitir confirmava-se. O contrabandista estava sentado na soleira da porta da casa do regedor. Um nagalho grosseiro imobilizava-lhe as mãos atrás das costas. Perto dele, o regedor vigiava. Para xerife só lhe faltava a estrela prateada no peito, porque a pistola estava presa ao cinto meio encoberta pelo casaco.
O regedor tratava o Miguel como se fosse o pior “fora-da-lei” de uma história de “cowboys” preso pelo xerife de qualquer terra do Texas ou de Montana. Porém, os “fora-da-lei” possuíam dois “colts” de seis tiros pendentes de um cinturão repleto de balas e tinham a cabeça a prémio. Os seus retratos, geralmente com a barba crescida, eram afixados em lugares públicos das redondezas. De histórias de xerifes, de “cowboys” e de “foras-da-lei” percebia eu, porque nesse tempo não me escapava uma revista de “histórias em quadradinhos”. Ora, o contrabandista não tinha a cabeça a prémio e nunca vira o seu retrato colado nas portas das tabernas da aldeia, locais destinados aos avisos. A única arma que usava era um pequeno canivete para descascar alguma peça de fruta. Portanto, o direito à sobrevivência não era crime – pensava eu.
Admiti: o regedor imitava o que lia nas revistas de “histórias em quadradinhos”, mas confundia tudo.
Sorrateiramente abeirei-me do Miguel e murmurei: – Fuja, enquanto eu distraio o regedor.
Ficou imóvel. Fitou-me com um olhar agradecido e dócil.
O regedor dava-se bem com o meu pai. Tratou-me sempre com deferência. Não seria difícil chegar-me a ele e desviar-lhe a atenção. Além disso, havia entre nós uma certa cumplicidade. Ambos tínhamos simpatia pelo mesmo clube. Quando a nossa equipa vinha de longe jogar com o clube da cidade próxima da aldeia, o regedor pertencia ao grupo que compartilhava o carro do meu pai na deslocação ao campo do jogo.
O regedor estava a cometer uma injustiça. Por isso, voltei a insistir: – Fuja e deixe o regedor comigo.
Manteve-se imóvel. Realmente, com as mãos atadas, até o Zorro, o Buffalo Bill, o Cisco Kid, ou qualquer outro herói das minhas histórias não iria longe. Seriam presas fáceis.
Ouviu-se o ruído do motor de um carro. As pessoas afastaram-se para deixar passar o jipe da GNR. Dois guardas saíram do interior. Após uma troca de palavras com o regedor que eu não consegui ouvir, obrigaram o contrabandista a entrar na viatura. Acerquei-me do jipe e olhei para o interior através da janela. O Miguel dirigiu-me um olhar e sorriu. É a última imagem que retenho desse homem bom e inofensivo. A viatura partiu a grande velocidade.
Quem prendeu o contrabandista era indigno de ser adepto do meu clube. Como não podia expulsar o regedor, decidi mudar de clube. Andei alguns dias a magicar no assunto. Mudar para o clube da cidade estava fora de questão, porque no campeonato tinha uma classificação pouco condigna, alguns lugares acima da linha de água. Mudar para um clube rival do meu nem seria hipótese. Enfim, mantive-me no clube da minha eleição, mas, a partir daquele dia evitava o regedor. Quando ele e o meu pai se encontravam estando eu presente inventava um pretexto e afastava-me.
Num Domingo, já o Verão fizera as despedidas e a feira de S. Miguel era uma lembrança, o meu clube veio jogar com o clube da cidade. Pessoalmente, esse acontecimento tinha mais significado do que a romaria da aldeia.
Logo pela manhã ganhei coragem, enfrentei o meu pai e pedi-lhe para não levar o regedor no carro a ver o jogo. Quem prendeu o contrabandista meu amigo era indigno de viajar ao nosso lado – disse-lhe.
Não fui atendido. O procedimento dos adultos é demasiado artificioso para a compreensão de uma criança. Fiz a viagem sentado ao lado do regedor. Procurou meter conversa comigo. Não lhe respondi.
A minha memória já não recorda o resultado desse jogo de futebol. Agora também não interessa. Foi certamente mais uma vitória do meu clube pois ganhava quase tudo.
Nunca soube qual foi o destino do contrabandista. Durante o ano seguinte após a prisão não retornou à aldeia. Os frascos do tal xarope que fazia crescer desapareceram das prateleiras da cozinha.
Concluída a Escola Primária parti para a cidade a fim de continuar os estudos no Liceu local. Regressava à aldeia apenas nas férias e em algum Domingo marcante. Durante esses períodos não vi o contrabandista. Creio, nunca mais voltou. É previsível o destino sentenciado. Deixou na minha memória uma imagem amargo-doce da minha infância.
Um rasgo de sol temporão esgueirou-se por uma fresta e foi iluminar o velhinho presépio de figuras toscas moldadas com barro grosso, relíquia que me acompanha desde a infância e resgatei a tempo da casa paterna.
Considero o presépio o símbolo maior do Natal, um tempo de sonhos para quem os pode ter.
Sobre a secretária à minha frente, o cartão de cidadão, testemunha silenciosa da minha idade não transige: sete décadas me separam das imagens que desfilaram no ecrã dos meus sonhos.
O meu olhar imobiliza-se no local do pequeno rectângulo plastificado acusativo da minha altura: 1,71 m. Quaisquer que sejam as interpretações, a justificação para essa altura mediana é única: foi o resultado da interrupção da tomada do xarope que fazia crescer durante a meninice vendido pelo Miguel, o contrabandista que vinha periodicamente à minha aldeia. Até hoje, nenhum médico conseguiu provar-me o contrário.
(João Soares Tavares escreve segundo o anterior acordo ortográfico)
Notas:
- Assim era designada a banda desenhada pela pequenada da aldeia.
- A designação dos miúdos para a folha-de-flandres
FONTE: Suplemento Cultural do Diário do Minho
LEGENDA PARA INCLUIR NA FIGURA:
Fig. 1 – Imagem do genérico do documentário cinematográfico, Memórias da Montanha”, realizado pelo autor. (Reservados os direitos de reprodução)
















