AFINAL QUEM DESCOBRIU A AMÉRICA? (PARTE VI)

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Dr. João Soares Tavares

 

 

 

 

 

AFINAL QUEM DESCOBRIU A AMÉRICA? (PARTE VI)

Por: João Soares Tavares

Conforme tenho documentado nos artigos anteriores, o descobrimento da América atribuído a Cristóvão Colombo não é tão linear conforme alguns pretendem fazer crer. Os navegadores portugueses em anos anteriores realizaram diversas viagens para Ocidente e, é certo, atingiram o continente americano antes do “velho almirante” tropeçar na primeira Antilha. O episódio de hoje fala precisamente de um pouco conhecido navegador português do século XV que deu um impulso a Colombo para concretizar o seu “descobrimento”.
Começo por reproduzir um excerto de uma obra da segunda metade do século XIX: “Pertence ao número das maiores antiguidades de Cascaes, e por isso aqui tem lugar a notícia, de ter nascido n’ esta terra o célebre piloto Affonso Sanches o qual navegando n’ uma caravela foi em 1480 arrojado por um temporal a uma remota longitude occidental, onde avistou terra até então desconhecida, que hoje se julga ser a América do Norte; e arribando depois à ilha da Madeira com alguns marinheiros, morreram todos em casa de Christóvão Colombo, que alli se achava casado com uma filha do donatário de Porto Santo, Barholomeu Perestrello. O diário náutico de Affonso Sanches ficou em poder de Colombo que d ́elle se aproveitou para descobrir, ou antes reachar a América em 1492, seguindo as indicações do navegador português. Tal é a narração que encontramos em vários livros, e que não devíamos esquecer sendo tão honrosa para a Pátria do notável piloto “.(1)

Com efeito este episódio sobre a caravela pilotada por Afonso Sanches que aportou na ilha da Madeira na segunda metade do século XV com
os “tripulantes mais mortos do que vivos” regressados de uma viagem no “Mar Oceano”, é narrado em diferentes livros com mais ou menos minuciosidades. Na figura 1 reproduz-se a réplica de uma caravela portuguesa do século XV.

1- Réplica de caravela portuguesa do sec. XV (Arquivo pessoal)

Retrocedamos alguns anos. Num ano impreciso, pelos meados de Quatrocentos, nasceu em Cascais uma criança do sexo masculino a quem foi dado o nome Afonso. Não se conhecem os progenitores, nem quaisquer dados biográficos dos primeiros anos de vida, além do nome e do local de nascimento. Ficou conhecido na História por Afonso Sanches. Sanches”, provavelmente de proveniência paterna. Os registos, se existiram, desapareceram. Sabe-se que faleceu em 1480.
Imagina-se Afonso Sanches a crescer olhando o mar junto dos pescadores, porventura a maior comunidade da vila. Certamente, foi também pescador. Terá feito na pesca a aprendizagem na navegação antes de se tornar um experiente piloto de mar alto.
A história terminaria aqui, não fosse uma viagem empreendida por Afonso Sanches no ano de 1480. «A certa altura do percurso, algures no Oceano Atlântico, uma enorme tempestade arrastou a caravela pilotada por Sanches para Ocidente. Tão longe os ventos e as vagas a levaram, que bordejou “ ilhas do mar das Caraíbas”, ou terá mesmo “avistado a América do Norte”. Na viagem de regresso, Afonso Sanches arribou à Ilha da Madeira, onde em conversa ocasional com Cristóvão Colombo lhe deu conhecimento da sua inesperada descoberta. O futuro Almirante terá recebido a notícia com muito agrado. » Esta narrativa sobre o encontro ocasional entre Sanches e Colombo na ilha da Madeira é contado por antigos pescadores da ilha que ouviram aos pais e aos avós.
O mesmo episódio encontra-se narrado na “Geografia, Brasílica ou Relação Histórico-Geográfica do Reino do Brasil”, Rio de Janeiro, 1817,
nos seguintes termos: ” O descobrimento deste hemisfério (América) é atribuído ao piloto genovês Cristóvão Colombo. Diz-se que a sua felicidade principiara com ele se achar na ilha da Madeira, quando pelo ano de 1480 ali aportou o mestre Sanches, com sua caravela
destroçada e três marinheiros, mais mortos do que vivos, pelas calamidades que sofreram com um temporal que os levara a remotíssima longitude ocidental, onde avistaram o que provavelmente era alguma das ilhas Caraíbas.” Outras fontes fazem relato semelhante (2)

2 – Lisboa no século XVI era já um importante porto marítimo. (In, Civitates orbis terrarum, Vol I, Georgius Braun e Hogenburg, séc. XVI)

O historiador Antonio Igual Úbeda refere que os conhecimentos de Colombo foram adquiridos das explorações portugueses e fala dos “posibles informes de un personage legendário, el piloto Afonso Sanches”.

 

 

3 – Cascais, terra natal de Afonso Sanches. (in, Civitates orbis terrarum, Vol I, Georgius Braun e Hogenburg, séc. XVI)

(3) Porém, desvia a naturalidade de Sanches para Huelva. Não é o único cronista espanhol a desviar a nacionalidade de um piloto português, sobretudo quando se notabilizava conforme tenho documentado em crónicas escritas no suplemento Cultura do Diário do Minho.

 

 

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4 – A memória que resta do lendário navegante Afonso Sanches (Arquivo pessoal)

Confirma-se documentalmente a presença de Colombo no arquipélago da Madeira em 1480. Aí vivia desde 1479, ano do casamento com a portuguesa D. Filipa Moniz Perestrelo, filha do donatário de Porto Santo Bartolomeu Perestrelo. (4)
Além do “Diário náutico de Afonso Sanches”, a estada na Madeira propiciou a Colombo outro documento importante para lhe alimentar a sua ambição: descobrir a “Índia” rumando a Ocidente. Vejamos o testemunho de Bartolomé de Las Casas, um historiador que não deixa margem para especulação: “escrituras y pinturas convenientes à la navegación, las quales dió la suegra al dicho Cristóbal Colon, con la vista y leyenda
de las quales mucho se alegró”. (5) A sogra de Colombo era D. Isabel Perestrelo. As ”escrituras y pinturas” pertenciam ao marido, o donatário de Porto Santo e sogro do Almirante. Vem a propósito reproduzir o que escreveu Colombo na cópia do Diário da sua primeira viagem, elaborada por Las Casas (o original perdeu-se assim como os diários das seguintes viagens), numa Terça-feira 25 de Setembro de 1492: “O almirante conversou com Martin Alonso Pinzon, comandante da caravela Pinta, acerca de um mapa que, três dias antes, lhe enviou da sua caravela e onde, segundo lhe parece, o almirante tinha pintado certas ilhas deste mar. Martin Afonso admitia que estavam nas suas paragens, e o almirante respondia que assim lhe parecia, porém, dado que ainda não tinham avistado essas ilhas, as correntes deveriam ser a causa que sempre fizeram desviar os navios para nordeste, e também porque não tinham percorrido tanta distância como os pilotos afirmavam.” (6) Onde obtivera Colombo o mapa com “certas ilhas deste mar” conforme se lê no seu Diário? A resposta parece óbvia. Valerá a pena reflectir alguns momentos sobre um mapa datado com segurança de 1492, (provavelmente o mapa em questão) que o investigador Charles de la Roncière atribuiu a Colombo. Tem assinalado para Noroeste dos Açores três ilhas designadas “Sete Cidades”, e numa das legendas lê-se: “colónia de portugueses”. (7) Acrescente-se, o desenho geral das três ilhas representadas na carta é semelhante à configuração da Terra Nova.
Roncière, perante as evidências, conclui com a frase: “o mapa de Colombo revela-nos assim o segredo do descobrimento da Terra Nova pelos Portugueses”. (8) Infere-se: antes de 1492 os portugueses viajaram no Atlântico Setentrional.
Charles de La Roncière acrescentou: “Colombo quando vivia em Porto Santo, viu em casa do seu sogro, Bartolomeu Perestrelo, uma carta da autoria de um cartógrafo que vivia na ilha no século XV, carta que em 1925 esteve numa exposição em Génova”. (9) Provavelmente é a mesma carta referida por Las Casas atrás transcrita.

*Porém, Colombo não possuía ainda os elementos necessários para planificar a viagem desejada à ambicionada Índia e, a Madeira, limitava-lhe os movimentos não lhe permitindo o contacto indispensável com os tripulantes das grandes expedições marítimas.
Em 1480, certamente após as informações inesperadas que obteve de Afonso Sanches, Colombo abandona a Madeira. O nascimento do seu filho, nesse ano de 1480, não o impede de optar por Lisboa. Confirma-se o nascimento de Diego Colombo (1480-1526) em Porto Santo. A família permanece no arquipélago enquanto o futuro Almirante regressa à capital a fim de continuar a sua “aprendizagem náutica”. Nessa época, Lisboa era um importante porto marítimo, de onde partiam e chegavam muitas expedições, o local propício para obter informações sobre viagens. Genoveses, flamengos, alemães, franceses, holandeses, galegos, castelhanos, biscainhos, todo o mundo parava em Lisboa.(Fig. 2)
Em 1482, navega para Africa. Esteve no forte de S. Jorge da Mina. Mas, em 1484 está novamente em Lisboa. Colombo recolhia todo o tipo de informações que lhe pudessem ser úteis nomeadamente junto de cartógrafos e dos experientes navegadores portugueses, após regressarem das viagens oceânicas. O filho Fernando embora sem valorizar esses factos por razões já invocadas em artigo anterior, faz algumas revelações
no seu livro (10).
Em geral, os investigadores que se dedicaram ao estudo da vida de Colombo, incluindo o historiador americano Samuel Eliot Morison céptico em relação às viagens pré-colombianas dos portugueses para Ocidente, assume ter Colombo apreendido em Portugal o manancial de conhecimentos que lhe permitiram realizar a viagem em 1492.

*Além das informações obtidas do navegante Afonso Sanches, porventura preciosas para a realização da primeira viagem, Colombo ficaria ligado à terra natal do navegador por outro motivo. É um episódio pouco conhecido, porque os livros biográficos limitam-se a referir: no regresso da sua primeira viagem Colombo aportou em Lisboa. Mas, não foi bem assim.
Na noite de 3 de Março de 1493, uma tremenda tempestade abateu-se sobre Cascais. (Fig.3) No mar, em frente, uma caravela debatia-se com as ondas. Era Nina, a caravela que transportava Colombo no regresso da sua viagem. (11) Esta notícia está revelada no Diário do Almirante:
“…os ventos pareciam levantar a caravela nos ares, a chuva e os relâmpagos que rasgavam a noite. Mas agradeceu a Deus virem em seu auxílio e foi assim até ao primeiro quarto, instante em que Nosso Senhor mostrou a terra aos marinheiros, (…). Ao amanhecer, o almirante reconheceu a terra (…) fica muito perto do rio de Lisboa, e decidiu entrar nele, porque não poderia proceder de outra maneira, tão terrível era a tempestade que se abatia sobre a cidade de Cascais, situada na entrada. Os da cidade, segundo disse, ficaram toda essa tarde em oração por eles, e, quando entraram no porto, todos vieram vê-los, deslumbrados por terem escapado”. (12) Somente quando as águas se acalmaram
Colombo partiu para Lisboa. De Lisboa seguiu depois para Azambuja onde se encontrava a corte, sendo aí recebido por D. João II. Esta visita de Colombo ao rei fez correr muita tinta. Alguns especulam: “por ser espião do monarca, caso contrário teria de imediato regressado a Espanha”. O assunto é aliciante, mas ficará para outra história.
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A pequena vila de pescadores, terra natal de Afonso Sanches, depois prosperou. A partir de 1870 é o local privilegiado da corte. O rei D. Carlos, amante do mar, fazia estadas prolongadas na vila. Entretanto, os ventos mudaram. Anos mais tarde, durante a Segunda Grande Guerra, foi covil de espiões e lugar de refugiados e exilados.
A frota piscatória agonizou. Restam poucos exemplares, marcos museológicos de um tempo outrora próspero.
A meia dúzia de passos do antigo porto de pesca, o terreiro onde os pescadores se dedicavam às suas tarefas – manutenção das redes, ou varar os barcos que necessitavam de cuidados: calafetagem, impermeabilização, limpeza – desapareceu. Edificaram casas e ruas. Em rua e travessa do terreiro outrora palmilhado por Afonso Sanches estamparam-lhe o nome. (Fig. 4 ) A memória que resta do lendário navegante que ensinou a Colombo o caminho para Ocidente.
João Soares Tavares escreve segundo o anterior acordo ortográfico
NOTAS:
(1) Barruncho, Pedro L. S. Borges ,“Villa e Concelho de Cascais”, Lisboa, 1873
(2) Veja-se também os Dicionários: “Portugal antigo e moderno” de Pinho Leal, Vol II; de Esteves Pereira e G. Rodrigues, Vol. VI e “Memórias Históricas” de João Cardoso da Costa
(3) Veja-se “Enciclopédia Labor”, Tomo 5, de António I. Úbeda, Madrid
(4) Colombo repartiu a sua vivência pela ilha de Porto Santo, onde viviam os sogros, e pela vizinha ilha da Madeira
(5) Las Casas, Bartolomeu de, “Historia General de las Indias”, Madrid, 1875
(6) Diário de Bordo da primeira viagem de Cristóvão Colombo, cópia de Bartolomé de Las Casas, in “Viajes de Cristobal Colón. Diários, Cartas y Documientos”, Archivo General de Indias, Sevilha
(7) Roncière, Charles de la, “La carte de Cristophe Colomb”, Paris, 1924
(8) Roncière, Charles de la , ob.cit.
(9) Idem, ibidem
(10) “Le Historie della vitta dei Fatti di Cristoforo Colombo” per D. Fernando Colombo, suo figlio, Venecia, 1571
(11) Santa Maria, a nau que transportou Colombo na primeira viagem às Antilhas naufragou numa baía da ilha Hispaniola. O Almirante fez a viagem de regresso na caravela Nina.
(12) Diário de Bordo da primeira viagem de Cristóvão Colombo, ob. cit.